terça-feira, 27 de julho de 2010

ERA UMA VEZ...

AS CRIANÇAS DA MINA*
(1ª parte)
— Tenham cuidado ao sair. O solo está escorregadio — avisou o professor, enquanto abria a porta pesada.
Apesar da advertência, os alunos tiveram dificuldade em resistir a uma pequena corrida, tanto mais que tinham passado a manhã toda sentados. Iniciou-se uma perseguição, um soco derrapou no gelo fino, e a brincadeira acabou em gargalhadas.
De todos os alunos, apenas dois não partilharam o bom humor reinante.
— Louis e Tounet! — exclamou o professor. — O que fazem aqui? As aulas já acabaram.
— Queríamos despedir-nos de si — murmurou Tounet.
— Sim, queríamos — confirmou Louis. — Amanhã descemos os dois e não vamos poder voltar.
A fisionomia do professor alterou-se e uma profunda tristeza invadiu os seus olhos.
— Já me tinha esquecido — disse.
Ficou calado por uns instantes e depois apertou demoradamente a mão de cada um dos rapazes.
— Vão, meus filhos, e sejam prudentes.
Nessa noite de Inverno, Louis e Tounet deixaram a escola para sempre. No dia seguinte, iriam descer à mina. A mina engolia todas as crianças que fizessem dez anos. Era essa a regra, tanto em Saint-Étienne, como em toda a França. Os dois rapazes pararam para saudar o cavalinho Tambour pela última vez. Fizesse chuva ou sol, o animal esperava--os sempre por detrás da cerca.
— Adeus, Tambour, vamos sentir a tua falta.
Depois da despedida, abalaram para suas casas, que ficavam nos arredores da cidade.
Na manhã seguinte, às cinco horas, os mineiros partiram para o trabalho. Eram cinco os que afrontavam a noite e o vento glacial: Louis e o primo, Émile, acompanhados por Tounet, pelo pai deste, Isidore, e pelo irmão, Charles.
— Eis-nos chegados! — resmungou Isidore, depois de uns longos minutos de caminhada.
As instalações da mina surgiram, devagar, diante dos olhos do grupo. Por entre um conjunto de barracas, chaminés e carris de comboio, distinguiam-se as silhuetas de dois pontões. Estavam construídos na vertical dos poços e sustentavam os cabos dos ascensores.
Cada poço tinha um nome. Louis e Tounet trabalhariam no Châtelus nº 1. A estrutura de madeira erguia-se com orgulho junto da via-férrea que conduzia a Firminy. À entrada do pontão, começava todo um labirinto de construções e de passagens.
— Vamos perder-nos — inquietou-se Tounet.
Mas chegaram sem problemas ao local onde cada um recebia a sua lâmpada. Charles repetiu os avisos:
— Nunca levantem a grelha da vossa lâmpada! Se a chama ficar azulada e aumentar, é sinal de grisu.
O grisu, um gás explosivo libertado pelo carvão, estava sempre na origem de vários acidentes. Três anos antes, por exemplo, tinha matado 70 pessoas no poço Jabin, a leste da cidade. Para evitar as explosões, as lâmpadas estavam equipadas com uma fina grelha metálica, que impedia que o grisu que houvesse na mina se inflamasse. Daí o aviso de Charles.
De repente, sem se aperceberem, já estavam diante do elevador, à espera de que uma das cabinas subisse. Os cabos desfilavam a toda a velocidade. Ouvia-se um barulho de trovão algures.
— Tens medo? — perguntou Tounet a Louis.
— Não. E tu?
— Eu também não — retorquiu o rapazinho.
Mas, apesar do esforço para aparentar a calma, estavam ambos muito pálidos.
Por entre um barulho de ferragens, uma cabina surgiu do poço para os levar para o fundo da mina. Mal se instalaram, a porta fechou-se com um ruído surdo. De repente, como se o chão fugisse debaixo dos pés, a cabina desceu a pique com uma rapidez incrível. Os dois rapazinhos tiveram a impressão de que o estômago ia sair-lhes pela boca.
Um vento escaldante fustigou-lhes o rosto. Foram sacudidos com violência: da esquerda para a direita, de frente para trás, de encontro às grades, de encontro às pernas dos mineiros. O vazio abriu-se debaixo deles e Louis pensou que ia desmaiar. Depois, a cabina travou bruscamente e imobilizou-se.
— Chegámos, rapazes!
Viam finalmente a mina de que tanto tinham ouvido falar. Diante deles estava uma sala, da qual partiam duas galerias.
— Toca a andar! Não estamos aqui para ver a paisagem! — disse Charles.
As equipas separaram-se. Louis foi com Émile para o estaleiro, enquanto Tounet acompanhava o irmão às cavalariças.
A equipa encabeçada por Émile atravessou dezenas de galerias, embrenhando-se cada vez mais no coração da terra. Quando chegou ao estaleiro, Émile disse:
— É aqui! O tecto está quase a abater. Temos de substituir a madeira toda num percurso de dez metros.
Louis foi encarregado de transportar as pranchas desde o armazém, a algumas dezenas de metros dali. A temperatura era insuportável e o rapaz já tinha saudades do vento glacial do exterior. Por volta do meio-dia, a refeição magra que tinham levado foi bem-vinda. Os mineiros contaram histórias como a do cavalo que se embebedara com o vinho do palafreneiro ou a do mineiro que jurava ter encontrado Belzebu numa mina de Ricamarie.
Findas a refeição e a brincadeira, o trabalho foi retomado, no meio de uma humidade impressionante. Por volta das quatro da tarde, iniciou-se o regresso à superfície. Louis reencontrou Tounet, que tinha sido encarregado de conduzir um dos cavalos da mina.
— O meu cavalo chama-se Apolo — disse, com orgulho.
Os dois amigos tinham mil coisas a contar um ao outro, depois deste primeiro dia. De volta a casa, tomaram banho, a última tarefa da jornada de um mineiro. Mas Louis sabia, por ter visto outros mineiros, que a poeira do carvão não sairia só com um banho…
As duas crianças desembaraçaram-se bem nas primeiras semanas de trabalho. Contudo, um incidente entre Louis e Ratel, um dos encarregados da mina, veio estragar o bom ambiente. Ao manobrar um tronco pesado demais, Louis magoou acidentalmente o encarregado num joelho.
— Imbecil! — gritou o homem. — Nem vês o que fazes!
— É o meu primito. Está a começar — desculpou-o Émile.
— É teu primo? Então tiro-te dois francos por não o teres ensinado a respeitar os superiores. Tu — continuou, falando com Louis — vens comigo. Tenho um óptimo trabalho para um idiota do teu estilo.
Louis foi empurrar vagões no sector oeste da mina, uma zona em que as galerias eram antigas, confusas e perigosas. Os mineiros chamavam a este sector “O Inferno”. Enquanto empurrava um vagão carregado com mais de cem quilos de carvão, Louis tentava encontrar um apoio para fincar os pés no solo lamacento. O seu trabalho consistia em conduzir as carruagens desde o local de extracção do carvão até à galeria principal. Aqui, os vagões eram atrelados de forma a constituir pequenos comboios, que iriam ser puxados por cavalos até à cabina.
“O Inferno” fazia jus ao nome: respirava-se com muita dificuldade e o calor era mais forte do que em qualquer outro lado da mina. Ainda por cima, o local tinha fama de estar cheio de grisu, devido às características do carvão aí existente. Os mineiros tinham muito cuidado com as candeias e respeitavam todas as normas de segurança, para não pôr em perigo a sua vida e a dos seus camaradas de trabalho.

(continua)
*A história “AS CRIANÇAS DA MINA” foi enviada pelo Clube de Contadores de Histórias, nascido em 2006 na Escola Secundária Daniel Faria, em Baltar, no seio do qual foi constituída uma equipa pedagógica, formada por professores de vários grupos disciplinares e provenientes de diversos estabelecimentos de ensino, que tomam a seu cargo a selecção, preparação e difusão de literatura infanto-juvenil.