sábado, 19 de junho de 2010

A NOSSA FÁBULA

Uma formiga trabalhava afincadamente, como hábito, quando se cruzou com uma cigarra de ar próspero.
Achou estranho e perguntou-lhe onde ia.
Lesta, a cigarra disse-lhe que seguia para o aeroporto, de partida para Nova Iorque, para uma apresentação de moda.
Despediram-se e a formiga continuou a trabalhar 18 horas por dia, sem folgas, procurando amealhar para os dias maus que se adivinhavam.
Passados uns tempos, encontra novamente a cigarra que lhe disse ter sido fantástica a viagem a Nova Iorque e que, entretanto, já tinha visitado Tóquio e Roma, estando de partida para Paris, em jacto privado. E que, se a formiga quisesse alguma coisa de Paris, estava disponível.
A formiga pensou e pediu-lhe: "Olha, se vires por lá o La Fontaine manda-o dar uma curva, da minha parte".
Pedro Passos Coelho vai à África do Sul ver um jogo de futebol, Portugal contra a Coreia do Norte. E a seguir, se ainda houver caminho, outros irão, num vai e vem que sustenta a lógica do "faz o que eu digo, não faças o que eu faço". Claro que é futebol e o circo sossega a barriga.
Aceitemos, pois, a excepção. Como o imposto que fura a Constituição, mas é retrospectivo antes de ser retroactivo. Com uma pequena objecção: se a coisa é séria, seleccione-se o mensageiro. Queiroz é o menos, Deco deve pouco ao futuro, ambos fazem o melhor que sabem. O problema, se é que ele existe nas cabeças que sofrem com a trave do golo, está exposto na figura e no comportamento do presidente da Federação Portuguesa de Futebol. Assim, em caixa alta e com o privilégio de uma instituição de interesse público.
O homem não sabe onde está ou ao que vai. Atrapalha-se quando perguntado. E Portugal joga quando? Segunda. Será? Terça? É. É indiferente para o responsável máximo pela coisa, numa figura pública que mostra a vacuidade e envergonha quem vê e ouve. Mas que é, naturalmente, alimentado pelas tetas de um certo regime.
O futebol é, de modo excessivo?, o espelho do país. É, mas é o que parece. O que hoje se discute, no meio da fome à espera de circo, é o número que cada pontapé deve desempenhar para que, no fim, o resultado compense a angústia. Tudo é pobre - e é nesse desenho civilizacional que emerge como bom o exemplo Mourinho. Goste-se ou não, ele percebeu que a sua qualidade excedia em muito a exigência local.
Na pequenez em que caiu o rectângulo perdeu-se garra e ganhou-se indiferença. Mudar as regras fiscais a meio do jogo, para se alcançar um determinado resultado, é matéria para os notáveis da academia aconselharem os notáveis políticos. Ninguém, por simples lembrança, afirma a verdade do que está a acontecer - e, aceitando os factos, declara o fim (será interregno?) da soberania e a inutilidade de um texto constitucional ou de um orçamento votado anualmente.
Haverá certamente quem se interrogue com a facilidade com que os poderes públicos vulgarizam a contradição na procura única de uma mesinha para que o mal não volte. Ao mesmo tempo que se elege o regresso ao aforro como solução para esse mal, castiga-se a ideia. Repare-se no exemplo prático: dois contribuintes com salário igual; um gasta, o outro aforra; são ambos despedidos; o que aforrou cem mil euros não tem direito a apoio social, o que gastou sem reservas está e fica ao abrigo do Estado.

Pois é. Vamos dar uma curva. Todos, até que o mal passe.

Raul Vaz, in http://economico.sapo.pt/noticias/a-nossa-fabula_92471.html