É a mesma casa de sempre e no entanto
falta a palmeira que viste crescer contigo no jardim, tão valiosa e
evocativa como todos os álbuns de fotografias que revisitas sempre que
aqui voltas.
O teu pai disse-te "Tivemos de cortá-la, estava doente, uma
praga", e, de súbito, é como se anunciasse uma morte na família, o
irremediável trotar do tempo obrigando-te a perscrutar tudo o que deixou
de ser e tudo o que permanece: o descampado no meio do pinhal onde já
ninguém joga à bola, os muros da rua vazios de miúdos que aproveitavam
as noites de verão para jogos de bate-pé, a quinta dos vizinhos
abandonada por causa de uma penhora, de um tumor no cérebro do chefe de
família, o canil vazio, uma revolta de ervas daninhas e sebes por podar
há anos.
Foi
nesta casa que passaste a maioria dos natais e, no entanto, lembras-te
agora de um apartamento onde a tua mãe te espreitava da janela enquanto
aguardavas a carrinha do colégio, e uma árvore artificial no canto da
sala, tremeluzindo luzinhas, um par de dias, até que as lâmpadas pifavam
e as bolas caíam dos ramos, um Natal em que não havia lugares vazios à
mesa e se abriam as prendas na manhã do dia 25. Depois o teu avô morreu,
a tua mãe morreu, a tua avó morreu, o teu outro avô morreu, o teu tio
morreu, e talvez seja por isso que podes recitar de cor: "Há de vir um
Natal e será o primeiro/ em que hão de me lembrar de modo menos nítido."
Foi
nesta casa que montaste presépios com musgo apanhado no pinhal e
enfeitaste árvores com estrelas e anjos, no entanto, há anos que não
tens uma decoração natalícia em tua casa, precisas de fazer um esforço
para não estragar o encanto dos teus sobrinhos diante do presépio:
"Sabem que na Bíblia nunca aparecem três reis, mas apenas três
presentes, e Jesus, se existiu, não deve ter nascido no dia 25 de
dezembro nem sequer em Belém."
Foi
nesta casa que escreveste os primeiros poemas de amor para raparigas
mais interessadas em motos do que em sonetos, no entanto, continuas a
caminhar sozinho pelas divisões onde deixaste de ser poeta amador:
móveis novos, a cozinha remodelada, um escritório onde antes havia um
quarto, nenhum telefone de disco a retinir a promessa de um beijo na
matiné do cinema, só o teu avô fardado de guarda-fiscal, sorrindo-te
como sempre na fotografia a preto e branco - a tua cara chapada -,
esperando que cumpras a promessa: "Há de vir um Natal e será o primeiro/
em que só uma voz me evoque a sós consigo.".
Mas
há mais do que fotografias fazendo perdurar o que já foi, porque as
chaminés da rua ainda espalham o mesmo fumo de lareira, um cheiro de
lenha e pinhas e noites frias de dezembro, quando um dos teus irmãos
saía para fumar um cigarro clandestino, no intervalo entre o bacalhau e
as rabanadas, e tu adormecias a ouvir uma coruja e o estalar dos
pinheiros.
Chegaste mais cedo a esta
casa porque te querias sozinho, a fim de fazeres o teu inquérito
privado, indagando o que deixou de ser e o que permanece. Procuras-te
nos mortos antes de abraçares os vivos.
Outra vez os álbuns
fotográficos, a coruja, as cinzas na lareira, os teus passos na casa
tentando parar a erosão da memória, um método arqueológico a que
recorres sempre que regressas: "Há de vir um Natal e será o primeiro/ em
que não viva já ninguém meu conhecido."
Percorreste
a casa inteira e já não queres estar sozinho. Há muito que esta é uma
viagem de ida e volta, o passado é um bom sítio para se visitar, mas não
para permanecer muito tempo. Esperas que chegue a família, e daqui a
nada estás outra vez a correr escada acima com os teus sobrinhos,
ensaiando lutas, fazendo perguntas sobre jogos de computador, trocando
as histórias de sempre com os teus irmãos, tratando-os por "maninho"
ainda que há anos todos tenham lugar reservado na mesa dos adultos e
cortem o exagero da doçaria com ajuda do whisky sem gelo.
A
coruja calou-se. O vento nos pinheiros também. Já ouves um carro, o
ranger metálico do portão, a chave na fechadura, as vozes e as
gargalhadas dos vivos abafando, por fim, a ladainha da tua melancolia
natalícia.
E tudo volta a ser como antes, mesmo que nada possa ser como
antes.
Hugo Gonçalves, aqui