sábado, 26 de dezembro de 2015

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

É a mesma casa de sempre e no entanto falta a palmeira que viste crescer contigo no jardim, tão valiosa e evocativa como todos os álbuns de fotografias que revisitas sempre que aqui voltas

O teu pai disse-te "Tivemos de cortá-la, estava doente, uma praga", e, de súbito, é como se anunciasse uma morte na família, o irremediável trotar do tempo obrigando-te a perscrutar tudo o que deixou de ser e tudo o que permanece: o descampado no meio do pinhal onde já ninguém joga à bola, os muros da rua vazios de miúdos que aproveitavam as noites de verão para jogos de bate-pé, a quinta dos vizinhos abandonada por causa de uma penhora, de um tumor no cérebro do chefe de família, o canil vazio, uma revolta de ervas daninhas e sebes por podar há anos.

Esta é a mesma casa de sempre e, no entanto, o teu quarto deixou de ser o teu quarto, a janela por onde escapavas à noite agora apenas uma janela, já não um portal de insurreição, de liberdade e de copos na discoteca. O que sobra de ti está em caixas na garagem, livros antigos, cadernetas escolares, revistas pornográficas escondidas numa pasta de desenhos, uma antologia de David Mourão-Ferreira que nem sequer precisas de abrir, os primeiros versos emergindo, aos borbotões, como um golpe na veia certa: "Há de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio."

Foi nesta casa que passaste a maioria dos natais e, no entanto, lembras-te agora de um apartamento onde a tua mãe te espreitava da janela enquanto aguardavas a carrinha do colégio, e uma árvore artificial no canto da sala, tremeluzindo luzinhas, um par de dias, até que as lâmpadas pifavam e as bolas caíam dos ramos, um Natal em que não havia lugares vazios à mesa e se abriam as prendas na manhã do dia 25. Depois o teu avô morreu, a tua mãe morreu, a tua avó morreu, o teu outro avô morreu, o teu tio morreu, e talvez seja por isso que podes recitar de cor: "Há de vir um Natal e será o primeiro/ em que hão de me lembrar de modo menos nítido."

Foi nesta casa que montaste presépios com musgo apanhado no pinhal e enfeitaste árvores com estrelas e anjos, no entanto, há anos que não tens uma decoração natalícia em tua casa, precisas de fazer um esforço para não estragar o encanto dos teus sobrinhos diante do presépio: "Sabem que na Bíblia nunca aparecem três reis, mas apenas três presentes, e Jesus, se existiu, não deve ter nascido no dia 25 de dezembro nem sequer em Belém."

Foi nesta casa que escreveste os primeiros poemas de amor para raparigas mais interessadas em motos do que em sonetos, no entanto, continuas a caminhar sozinho pelas divisões onde deixaste de ser poeta amador: móveis novos, a cozinha remodelada, um escritório onde antes havia um quarto, nenhum telefone de disco a retinir a promessa de um beijo na matiné do cinema, só o teu avô fardado de guarda-fiscal, sorrindo-te como sempre na fotografia a preto e branco - a tua cara chapada -, esperando que cumpras a promessa: "Há de vir um Natal e será o primeiro/ em que só uma voz me evoque a sós consigo.".

Mas há mais do que fotografias fazendo perdurar o que já foi, porque as chaminés da rua ainda espalham o mesmo fumo de lareira, um cheiro de lenha e pinhas e noites frias de dezembro, quando um dos teus irmãos saía para fumar um cigarro clandestino, no intervalo entre o bacalhau e as rabanadas, e tu adormecias a ouvir uma coruja e o estalar dos pinheiros.

Chegaste mais cedo a esta casa porque te querias sozinho, a fim de fazeres o teu inquérito privado, indagando o que deixou de ser e o que permanece. Procuras-te nos mortos antes de abraçares os vivos. 

Outra vez os álbuns fotográficos, a coruja, as cinzas na lareira, os teus passos na casa tentando parar a erosão da memória, um método arqueológico a que recorres sempre que regressas: "Há de vir um Natal e será o primeiro/ em que não viva já ninguém meu conhecido."

Percorreste a casa inteira e já não queres estar sozinho. Há muito que esta é uma viagem de ida e volta, o passado é um bom sítio para se visitar, mas não para permanecer muito tempo. Esperas que chegue a família, e daqui a nada estás outra vez a correr escada acima com os teus sobrinhos, ensaiando lutas, fazendo perguntas sobre jogos de computador, trocando as histórias de sempre com os teus irmãos, tratando-os por "maninho" ainda que há anos todos tenham lugar reservado na mesa dos adultos e cortem o exagero da doçaria com ajuda do whisky sem gelo.

A coruja calou-se. O vento nos pinheiros também. Já ouves um carro, o ranger metálico do portão, a chave na fechadura, as vozes e as gargalhadas dos vivos abafando, por fim, a ladainha da tua melancolia natalícia. 

E tudo volta a ser como antes, mesmo que nada possa ser como antes.

Hugo Gonçalves, aqui