Cidade do Lobito, 25 de Abril de 1974.
Com treze
anos de idade, eu não sabia o que levava os professores a cochicharem tanto pelos
corredores, nem conhecia a razão pela qual havia sido cancelada toda a
actividade escolar; mas, para quem frequentava um liceu a escassas centenas de
metros do oceano atlântico, nada isso tinha importância alguma.
Nessa tarde, a praia do Compão foi invadida por muitos alunos e foi da boca de um lingrinhas do 7º (actual 11º) ano, que usava uns óculos com lentes-tipo-fundos-de-garrafas e que até para a praia levava os livros escolares, que de sorvete em punho e sentado na areia ouvi pela primeira vez expressões como ‘faxismo’, ‘regime política e socialmente esgotado’, ‘guerra colonial sem solução militar à vista’, ou ‘reivindicações políticas’.
Nessa tarde, a praia do Compão foi invadida por muitos alunos e foi da boca de um lingrinhas do 7º (actual 11º) ano, que usava uns óculos com lentes-tipo-fundos-de-garrafas e que até para a praia levava os livros escolares, que de sorvete em punho e sentado na areia ouvi pela primeira vez expressões como ‘faxismo’, ‘regime política e socialmente esgotado’, ‘guerra colonial sem solução militar à vista’, ou ‘reivindicações políticas’.
Sabendo
do que falava, o fuinha logo acrescentou que fora este o mote para que o
movimento dos capitães de Abril tivesse desencadeado operações militares, sob a
senha de uma festivaleira canção, as quais culminaram sem derramamento de
sangue no dia em que uma pastelaria da baixa de Lisboa comemorava mais um
aniversário da sua laboração com a oferta de flores aos clientes.
Disse-nos
também o borbulhoso caixa-de-óculos que a funcionária encarregada de as comprar
se decidira pelos cravos vermelhos, distribuindo-os também pelos militares por
que passava, que os colocaram nos canos das espingardas, permitindo à
comunicação social a obtenção de imagens que logo correram o mundo, convertendo
deste modo o cravo vermelho no símbolo da ‘revolução dos cravos’.
Passado
pouco mais de um ano, em início de Agosto de 1975, a guerra instalou-se na
cidade atulhada de soldados de cara feia e armados
até aos dentes, e durante algumas noites vi os riscos das balas tracejantes de
incessantes tiroteios a atravessar o céu, e ouvi morteiros a cair com estrondo,
semeando rastos de morte e de destruição.
Este clima
de intensificação de conflitos, que se alastrou de forma indiscriminada à
generalidade das cidades, acabou por precipitar
um processo de descolonização que conduziu ao dramático regresso de cerca de um
milhão de retornados que se tinham fixado no ultramar, a um exaurido e
impreparado Portugal onde a maioria aterrou ou desembarcou com parcos teres e haveres
em grandes caixotes de madeira maciça.
Pessoalmente
não passei por isso, e tanto a minha família como eu fomos acolhidos por consanguíneos
maternos que solidariamente nos garantiram cama e mesa com inexcedível
hospitalidade; mas foram aos milhares os portugueses que, estigmatizados à
chegada, logo foram rotulados como sendo ‘de segunda’ por concidadãos
representados na assembleia constituinte por quem aludiu à sua decisão e
vontade, para consagrar constitucional e maioritariamente a abertura de caminho
para uma sociedade socialista.
Volvidas
quatro décadas, são cada vez mais as dúvidas que se suscitam sobre o devir da
revolução de Abril, aumentando em cada ano o número dos que afirmam que a ditadura política foi meramente substituída por
uma ditadura económica, tal a descrença
dos cidadãos nas instituições e nos princípios democráticos, num país que apesar de ter valores humanos de
referência no âmbito da engenharia, da arquitectura, da pintura, da literatura,
da ciência, do desporto, da medicina, das artes plásticas, da investigação
científica, e em tantas outras áreas do conhecimento, mantém um poder político
fragmentado e vulnerável aos interesses individuais ou corporativos, gerando
políticos que em nome da disciplina partidária até ofendem a própria
consciência e onde, como
alguém escreveu um dia destes, a obediência redime, a cabeça baixa salva e a
submissão leva à vitória.
Apesar de tudo,
continuo a acreditar que, mesmo com limitações, a democracia é, ainda assim, o
regime que melhor garante os direitos humanos e o desenvolvimento dos povos;
mas para que possa ser
dada resposta eficaz às exigências deste tempo, é exigível que cada
português combata não só a anomia cívica, mas principalmente a
manipulação, a intolerância e a vitimização, melhorando o exercício democrático da política, pois só assim será possível
construir um Portugal mais justo, mais desenvolvido e mais capaz de responder com eficácia à exigência do
tempo que corre.
Afinal, pode
muito bem ser esta a tal pedra filosofal da política nacional por todos
almejada, mas que em 25 de Abril de 1974 nunca havia, sequer, sido imaginada
por um adolescente de treze de anos, naquela que à data era conhecida como a
sala de visitas da actual República Popular de Angola.
Mas… estará o nacional-comodismo verdadeiramente
disposto a isso?
Jorge Mendonça
*
Publicado no livro '40 Anos de Abril - Memórias de Oliveira do Bairro', uma edição da Comissão Permanente da Assembleia Municipal de Oliveira do Bairro, evocativa da passagem dos 40 anos do '25 de Abril de 1974'.