terça-feira, 24 de dezembro de 2013

UTILIZADOR - PAGADOR


Há muitos anos - seguramente mais de 20 - Cavaco Silva convidou-me para almoçar.
Ele era na altura primeiro-ministro, e não me informou sobre o motivo do convite.
Quando cheguei a S. Bento, vi que havia outro convidado: Eduardo Prado Coelho.
E, pouco depois de a refeição começar, percebemos que o tema era o financiamento da cultura.
Cavaco defendia o princípio geral do utilizador-pagador.
Explicava que, em sua opinião, o Estado não deveria financiar à cabeça, por exemplo, as companhias de teatro.
“Faz algum sentido financiar-se uma peça que não tem espectadores?”, perguntava.
Em alternativa, propunha um modelo em que o Governo financiasse os bilhetes.
O Estado pagaria uma percentagem de cada bilhete vendido, para que o espectáculo fosse mais acessível ao bolso do espectador.
Mas só isso.
Concordei em termos gerais com o princípio, porque também acho que não faz sentido produzir obras culturais pelas quais ninguém se interessa - sejam livros, filmes ou peças de teatro.
Como qualquer outra actividade, a cultura tem de ser financeiramente sustentável.
O Estado (isto é, nós todos) pode ajudar um bocadinho, mas não deve alimentar constantemente actividades que não têm público.
Esta, repito, foi a minha posição.
Prado Coelho foi menos afirmativo.
Refugiou-se no 'nim', disse que num país como Portugal o Estado não pode deixar de financiar certas formas de cultura que doutro modo morreriam, etc.
Vinte anos passados sobre esta conversa, estou ainda mais convicto do que pensava na altura - e não só em relação à cultura mas ao conjunto da sociedade.
A grande causa da exaustão do modelo social português - e europeu - é exactamente ter-se afastado demasiado do princípio do utilizador-pagador.
Na sociedade ocidental as pessoas beneficiam de muitas coisas que não pagam.
Quase não pagam a saúde (nos hospitais públicos).
Quase não pagam a educação (nas escolas públicas).
Não pagam a rádio, nem a televisão generalista, nem muitos media online, nem serviços como o Google.
Não pagam (ou não pagaram durante muito tempo) algumas auto-estradas.
Além disso, há inúmeras instituições - desde fundações a companhias de teatro, orquestras, produtoras de cinema - que vivem de subsídios públicos, ou seja, que não se pagam a si próprias.
Ora, este modelo está errado na base.
A sociedade capitalista evoluiu no sentido socialista, ou seja, as pessoas deixaram de pagar directamente muitos serviços, passando a pagá-los indirectamente, através de impostos.
Em vez de pagarem tudo o que consomem, os cidadãos pagam hoje uma contribuição ao Estado - que depois faz a repartição do bolo como entende, distribuindo o dinheiro pela saúde, pela educação, pela cultura, pela RTP, pelas fundações, etc.
Ou seja: não são as pessoas a decidir totalmente o modo de gastarem o seu dinheiro, mas sim o Governo.
Com isto, o sistema capitalista (que assenta na ideia de o cliente pagar por aquilo que adquire) foi-se afastando da sua matriz.
As pessoas foram perdendo a noção do valor das coisas.
E isso é pouco saudável, até porque ninguém valoriza aquilo que é oferecido.
O abandono do princípio do utilizador-pagador foi também o que conduziu à insustentabilidade do Estado.
O que as pessoas pagam em impostos não chega hoje para cobrir tudo o que o Estado financia.
Perante isto, julgo que a nossa sociedade tem de começar a fazer o caminho inverso daquele que trilhou nas últimas décadas, ou seja, recuperar o princípio do utilizador-pagador.
E quanto mais tarde o fizer pior.
Mais a crise se agravará.
A saúde e a educação não podem, logo à partida, continuar a ser gratuitas.
Isto não significa que as pessoas deixem de se tratar e de estudar.
Mas só não pagarão aqueles que não possam pagar.
O Estado Social deve existir para ajudar os que precisam e não para financiar quem não precisa.
E como se faria a selecção?
Muito simplesmente, através da folha do IRS: quem tivesse rendimentos abaixo de determinado valor não pagaria.
É claro que isso permitiria fraudes.
Mas não há nenhum sistema perfeito.
A aplicação a toda a sociedade do princípio do utilizador-pagador seria uma revolução.
Mas uma revolução que resolveria boa parte dos problemas que hoje nos afligem.
O Estado passaria a ser sustentável - e os impostos poderiam descer imenso.
Depois, o ensino público e o privado competiriam no mesmo patamar - ou quase.
A saúde pública e a privada idem.
A televisão pública e as privadas também.
Não haveria compensações pagas pelo Estado a privados por isto e por aquilo - e certos problemas que temos, como as PPP ou as SCUT, não existiriam.
Uma auto-estrada ou um hospital poderiam ser construídos pelo Estado ou por privados - e receberiam os correspondentes pagamentos dos utentes; uns projectos dariam lucro, outros prejuízo, mas isso é o que acontece com todos os investimentos.
As pessoas teriam a noção de que só pagariam os serviços de que realmente beneficiam.
Não estariam os transmontanos a pagar por pontes ou auto-estradas no Algarve - ou vice-versa.
Em suma, a sociedade seria mais justa e muito mais dinâmica.
O Estado só ajudaria os necessitados, a concorrência seria mais leal, os impostos não asfixiariam a economia.
É óbvio que, uma vez aceite o princípio, seria necessário fazer aqui e ali alguns ajustes, abrir uma ou outra excepção.
Mas seriam as excepções - e não a regra.
O que se passa hoje na nossa sociedade - e na Europa em geral - é que a excepção tornou-se a regra e a regra devia ser a excepção.
E isso está a conduzir à morte lenta do sistema.

José António Saraiva, aqui