Ela não sabia explicar. Por muito que já tivesse remexido nas ideias, não conseguia descobrir porque raio é que ainda não tinha saído dali.
O ordenado não era de sonho, a cadeira não era confortável e o mobiliário deixava perceber que a empresa tinha patrões de gosto duvidoso, mais de cinquenta anos, ou as duas coisas.
Estava ali a trabalhar há tanto tempo que a gaveta do armário abria com um jeitinho de chave que só ela sabia dar, tal era o grau de intimidade entre as duas.
Os colegas já tinham mudado de nomes e tirando dois ou três que pareciam confundir-se com o cenário, já todos tinham ido embora. Ou porque o contrato era a prazo, ou porque a paciência tinha chegado a termo. Alguns tinham saído com uma reforma que não chegaria para grandes passeios e outros com o mesmo caderno de recibos cor da esperança que se esforçavam por não perder.
O patrão já tinha feito duas mulheres felizes com os acordos de divórcio e agora, além de continuar a tirar as medidas a tudo quanto era lábio pintado que passeasse por aqueles corredores, estava outra vez casado com uma loira daquelas que acordam penteadas e sem remelas e que deixam um rasto a perfume quando passam por nós, incapazes que são de deixar qualquer outra marca. Talvez só uma ou outra, cor de sangue.
Ela continuava ali, sem que fosse capaz de explicar porque é que continuava ali.
Entrou durante muitos anos à mesma hora e saiu quase todos os dias meia hora depois da hora de saída. De há uns anos para cá continuava a entrar à mesma hora e a sair quase uma hora depois do que estaria previsto.
Durante muito tempo tratou de papéis que vinham escritos por alguém que escrevia muito mal e que depois precisavam de ser assinados por alguém que lia muito mal.
Durante muitos anos acreditou que mais dia menos dia ia ser capaz de arranjar forças para sair dali. Para ir procurar um sonho qualquer noutro lugar qualquer que ela nem sabia onde ficava mas que era muito, muito longe dali.
Estava na hora de acordar devagarinho. De rir alto e de deixar escapar o que tinha guardado. As coisas que tinha escondido dos outros todos. Desejos. Medos. Os sentidos.
Estava cansada. Ou estava na hora de desligar o computador. Estava na hora disso.
De arrumar os papéis. De fechar a gaveta.
Ali era o que tinha que fazer. Queria ser o que tinha dentro.
Amanhã.
Amanhã ia perder a hora do costume.
Cristina Gameiro, aqui