Pelo
modo como coloca os pés no chão, cruza as mãos uma sobre a outra e
inclina ligeiramente a cabeça, percebo que é gay.
Estamos no edifício
da FNAC do Chiado. Trabalho naquela zona e, pelo menos duas vezes por
dia, subo e desço a Rua Garrett. Frequentemente, por comodidade, utilizo
o elevador da FNAC: é uma forma prática de ir da Baixa para o Chiado e
vice-versa.
Em todas as grandes cidades do mundo há lugares
preferidos pelas comunidades gay. Não sei as razões que conduzem a essas
escolhas, mas muitos guias turísticos já as referem. O Chiado é, em
Lisboa, uma dessas zonas – e, de facto, cruzamo-nos aí constantemente
com ‘casais’ de mulheres e sobretudo ‘casais’ de homens de todas as
idades.
Julgo ser um facto notório que a comunidade gay está a
crescer. Há quem afirme que não é assim – e o que se passa é que os gays
têm cada vez menos receio de se assumirem, cada vez menos receio de
revelarem as suas inclinações, tendo orgulho (e não vergonha) de serem
como são.
Talvez esta explicação seja parcialmente verdadeira.
Mas,
se for assim, é natural que o número de gays esteja mesmo a crescer. O
assumir da homossexualidade por parte de figuras públicas acabará
forçosamente por ter um efeito multiplicador, pois funciona como
propaganda.
Até há duas gerações a homossexualidade era reprimida
socialmente, pelo que muitos jovens com inclinações homossexuais teriam
pejo de se assumir – acabando alguns por constituir família para afastar
eventuais suspeitas. Conheço vários exemplos desses: casos de homens e
mulheres que se casaram, vindo mais tarde a trocar o parceiro ou a
parceira por uma pessoa do mesmo sexo.
Ora hoje passa-se o
contrário: alguns jovens que não têm inclinações evidentes acabam por
ser atraídos pelo mistério que ainda rodeia a homossexualidade e pelo
fenómeno de moda que ela assumiu em determinados sectores. Não duvido de
que há gays que nascem gays. Mas também há gays que se tornam gays –
por influência de amigos, por pressão do meio em que se movem (no
ambiente da moda isso é claro), e por outra razão que explicarei adiante
e me levou a escrever este artigo.
Ao olhar esse jovem que ia à
minha frente no elevador, pensei: será que há 20 anos ou 30 anos ele
teria a mesma atitude, assumiria tão ostensivamente a sua inclinação? E,
indo mais longe, se ele tivesse sido jovem nessa altura seria gay?
Tive
dúvidas. Ao observar aquele rapaz tive a percepção clara de que a sua
forma de estar, assumindo tão evidentemente a homossexualidade,
correspondia a uma atitude de revolta.
Durante séculos, os filhos
seguiram submissamente as orientações dos pais em matéria de profissão e
casamento. Às vezes contrariados, mas seguiam. Havia famílias de
diplomatas, de advogados, de arquitectos, de empresários, de
comerciantes, de carpinteiros, de padeiros, de trabalhadores rurais.
Mas
nos anos 60 dá-se na sociedade ocidental uma revolução que mudaria o
mundo. É a geração dos Beatles, de Woodstock, do Maio de 68, da droga,
do sexo livre e da contestação à guerra do Vietname – ‘Make love, not
war’ –, da contestação em geral.
O termo ‘contestatário’ entrou na
linguagem comum. As palavras ‘irreverente’, ‘insubmisso’, ‘rebelde’,
etc. deixaram de ter uma conotação negativa e passaram a ser vistas como
elogios. E não se tratava apenas de um fenómeno europeu. Uns anos
antes, do lado de lá do Atlântico, filmes como Rebel Without a Cause
(Fúria de Viver), de Nicholas Ray, faziam furor – e James Dean, o
protagonista, tornava-se o ícone de uma geração ‘rebelde’ sem uma
‘causa’ bem definida.
Nessa época, um jovem que não fosse contestatário não estava bem dentro do seu tempo.
Pertenci a essa geração em que muitos jovens da minha idade estavam em guerra aberta com a família. Eu tinha amigos revolucionários, que andavam a pintar paredes com frases contra Salazar e a guerra colonial, ou em reuniões clandestinas contra a ditadura, cujos pais tinham lugares de confiança no regime salazarista.
Houve conflitos tremendos entre
pais e filhos. Os pais, funcionários exemplares, presidentes de Câmara,
directores-gerais, militares de elevada patente, etc., sofriam horrores
com a irreverência dos filhos que andavam em manifestações, entravam em
conflito com a Polícia e às vezes eram presos.
Em 1969, era o meu
tio José Hermano Saraiva ministro da Educação Nacional, eu estava
envolvido na luta académica contra o Governo na Escola de Belas-Artes. E
pouco depois o meu irmão mais velho foi preso e julgado por
‘actividades subversivas’ – e quem o defendeu, num acto de grande
coragem e dignidade, foi ainda o meu tio José Hermano, que era então
deputado.
Acrescente-se que muitos dos políticos que hoje estão
no activo andaram envolvidos em lutas estudantis e em movimentos
revolucionários. O caso de Durão Barroso, que militou no MRPP, é o mais
conhecido mas não é o único.
Nos dias que correm, todas essas
ilusões revolucionárias morreram ou estão em vias de extinção. O fim da
União Soviética e a queda do Muro de Berlim, a evolução da China para
uma economia capitalista, a morte política de Fidel, tudo isso fez com
que certos mitos desabassem e nascessem outras formas de recusa do
modelo de sociedade em que vivemos.
Ora uma delas é a
homossexualidade. Para alguns jovens, a homossexualidade surge como uma
forma de mostrar a sua ‘diferença’, de manifestar a sua recusa de uma
sociedade convencional, de lutar contra a hipocrisia daqueles que não
têm coragem de se mostrar como são, de demonstrar solidariedade com
aqueles que são discriminados ou perseguidos pelas suas opções.
Ser
homossexual, para muitos jovens, é tudo isto. É uma forma de
insubmissão. E, está claro, é um desafio aos pais. Se antes os jovens
desafiavam os pais tornando-se ‘de esquerda’, hoje desafiam-nos
recusando a ‘família burguesa’ e mostrando-lhes que há outras formas de
relacionamento e até de constituir família. Aliás, assumir-se como
homossexual talvez seja, por muitas razões, o maior desafio que um filho
pode fazer aos pais.
Todas as gerações, desde esses idos de 60,
tiveram os seus sinais exteriores de revolta. Foram os cabelos
compridos, as drogas, as calças à boca-de-sino, as barbas à Fidel
Castro, os posters de Che Guevara colados na parede do quarto.
Ora
a exposição da homossexualidade é hoje uma delas. E a opção gay é uma
forma de negação radical: porque rejeita a relação homem-mulher, ou
seja, o acto que assegura a reprodução da espécie. Nas relações
homossexuais há um niilismo assumido, uma ausência de utilidade, uma
recusa do futuro. Impera a ideia de que tudo se consome numa geração – e
que o amanhã não existe. De resto, o uso de roupas pretas, a fuga da
cor, vão no mesmo sentido em direcção ao nada.
O fenómeno da
homossexualidade como forma de contestação deste modelo de sociedade em
que vivemos, de afirmação radical de uma diferença – enquadrada num
fenómeno contestatário iniciado nos anos 60 –, nunca foi abordado.
Mas
olhando para aquele adolescente que ia à minha frente no elevador da
FNAC, percebi que era isso que o movia quando fazia uma pose
ostensivamente feminina. Ele dizia aos companheiros de elevador: «Eu sou
diferente, eu não sou como vocês, eu recuso esta sociedade hipócrita,
eu assumo-me».
José António Saraiva, aqui