segunda-feira, 19 de março de 2012

UMA CARTA DE JOÃO GRAVE A PADRE ACÚRCIO

Entre 22 de Outubro de 1889 e 25 de Março de 1925, decorreu a vida do Padre Acúrcio Correia da Silva, homem e escritor de mérito nascido na povoação do Cercal do Concelho de Oliveira do Bairro.

Tinha completado 35 anos de existência em Outubro de 1924 e avançava já para os 36 anos quando faleceu em Sangalhos, onde exercia as suas funções sacerdotais e donde se efectuou o seu funeral para o cemitério da sua freguesia, Oliveira do Bairro, o qual, segundo o seu “In Memorian”, p. 6, constituiu a maior manifestação de pesar que jamais se viu em terras da Bairrada.

Como se confirma, teve vida curta mas manteve-se sempre fiel aos seus ideais religiosos, filosóficos e político-sociais.

Poeta e escritor de amor arreigado à sua terra e à sua região, publicou alguns livros, foi orador sacro de renome, fez palestras, dedicou-se com revigorada afeição aos seus paroquianos, preocupou-se com a formação das crianças para as quais escreveu pequenas peças de teatro e textos para recitação, em verso e em prosa, colaborou em muitos jornais da imprensa regionalista, fez registos da linguagem e manteve contactos culturais com outros escritores contemporâneos, fundando com António de Cértima e outros a célebre Plêiade Bairradina.

Tivemos ocasião de verificar que, entre o seu vasto e disperso espólio, se encontravam diversos esquemas de sermões, livros que não chegaram a ser publicados, apreciações críticas, listas de nomes de autores da sua predilecção de cujas  obras pensava vir a extrair excertos para a elaboração de uma antologia, o que nos prova que era um leitor assíduo de variadíssimos trabalhos escritos.

Citamos ainda uma vasta correspondência e, entre ela, tivemos a sorte de encontrar uma carta de agradecimento do escritor João Grave, natural de Vagos, que ele apreciava.

Ora, porque se trata do contrato escrito entre estes dois escritores e porque não é conhecida, passamos a transcrevê-la:
“Exmo. Senhor “Sálcio Bairrada”
Porto, 26 de Janeiro de 1920

Venho cumprir o dever de lhe manifestar o meu reconhecimento sincero pelas amabilíssimas palavras por V. Exa. Consagradas ao meu nome. Sim!

Com efeito, nasci em Vagos. V.ª Ex.ª não se enganou. Só se enganou quando, porbondade e gentileza, me atribuiu méritos que não possuo: - mas esse engano apenas reverte em proveito do que é de V.ª Ex.ª.

Amigo certo e admirador
João Grave”
  
Esta carta é dirigida a Sálcio Bairrada, um dos vários pseudónimos usados pelo Padre Acúrcio, através do qual terá feito a sua apreciação favorável ao escritor João Grave.

Ora Padre Acúrcio e João Grave, sendo contemporâneos, podem considerar-se nascidos na mesma região limitada a nascente pelas margens do rio Cértima e a poente pelas do rio Boco; conheceram o mesmo tipo de gente dedicada os trabalhos agrícolas, a dureza da sua vida, as suas alegrias e infortúnios; ambos desenvolveram temas comuns como a educação das crianças e do povo, ambos desenvolveram o tema da guerra e das suas consequências nefastas, ambos foram conhecedores profundos das pessoas e actividades rurais no meio das quais nasceram, ambos se debruçaram sobre assuntos de carácter social, ambos alimentaram a mesma fé e a mesma esperança.

Com uma diferença de idade de 17 anos (João Grave n. 1872 e Padre Acúrcio n. 1889) foi naturalíssimo que Acúrcio apreciasse já a vasta obra de João Grave, autor sereno e ponderado que, de acordo com os seus princípios, não feria a sensibilidade dos seus leitores.

Aliás, Júlio Dantas, autor do parecer sobre a candidatura de João Grave a sócio da Academia das Ciências de Lisboa, ao evocar algumas das suas obras, considera o seu livro “Reflorir” verdadeiro Evangelho de bondade e de ternura.

Infere-se da carta de João Grave que as amabilíssimas palavras de Acúrcio foram ditadas pela sensibilidade entusiasmada de um jovem de 31 anos, quando o autor estava perto dos 50 e cujas edições dos seus trabalhos literários eram evidentes.

Com este artigo, queremos mais uma vez evocar esta figura prestigiosa de grande bairradino que foi Padre Acúrcio Correia da Silva o qual jamais todos nós, o povo do seu Concelho, deveríamos esquecer.

António Capão, no 'Jornal da Bairrada' de 15 de Março de 2012