terça-feira, 26 de julho de 2011

ERA UMA VEZ...

O PINTO PRETO

Era uma galinha que não tinha pintos. Ela chocava os ovos, mas saíam todos goros.

Um dia, alguém, por maldade ou distracção, meteu no choco um ovo de corva. Passado tempo, do ovo rompeu um passareco feinho que mal se tinha nas pernas.

A galinha chamou-o de filho e o corvinho trangalhadanças chamou-a de mãe. Assim podia acabar a história, que acabava em maravilha.

Mas a capoeira não aceitou este final.
- Não é dos nossos - cacarejavam as restantes galinhas.
- Vai dar má fama ao poleiro - proclamava o galo.

Só a galinha o defendia e com tanta força nas bicadas que se deu ao respeito.

Entretanto, as pernas espetadas do bicharoco foram ganhando outra compostura e volume e brilho. Tinha-as de um preto tão luzidio que, por elas rasando, de um certo e determinado ângulo, os raios de sol, parecia o corvo uma ave rara, toda vestida de prata e azul.

A mãe galinha, orgulhosa, não se cansava de olhá-lo. O galaró, esse, fazia vista grossa, mas começava a sentir-se ameaçado nos seus poderes e prosápias.

Sem razão, afinal. O corvo era manso, respeitador. Por vontade dele, seria toda a vida pinto.

Passava a noite acordado, enquanto a criação dormia. Não era crise de insónia, mas uma forma de se proteger do desgosto de se sentir diferente. Por sua vez, mal o sol despontava, metia a cabeça debaixo da asa e adormecia. Era da maneira que não aturava os olhares despeitados dos colegas do galinheiro.

Estava ele uma noite, no seu matutar, virado para a Lua, quando sentiu umas raspadelas suspeitas, do lado em que a rede estava mais folgada. Era um ladrão, pilha-galinhas, rapinante, desses que torcem o pescoço ao galinhame adormecido e zás, atiram o recheio de uma capoeira toda para dentro de um saco, em menos de um ai.
- Ai! - terá gritado o corvo de alerta. E continuou na gritaria.

Se não foi ?ai" foi coisa parecida, grasnada em toque de cornetim. Saltaram galo e galinhas do poleiro - algumas até caíram -, o ladrão atarantou-se com a chinfrineira e pôs-se a cavar, de saco vazio.
- Salvaram-se, graças ao meu filho - não se cansava de repetir a mãe galinha.

Concordância geral. Todos abriram as asas ao herói. E logo ali decidiram, com muitos bravos, que o corvo passava à categoria de segurança, guarda-nocturno, guarda-redes de toda a capoeira. As penas do corvo luziam de felicidade.


António Torrado e Cristina Malaquias, aqui