terça-feira, 3 de maio de 2011

ERA UMA VEZ...

A OBRA MAIA BELA

Na oficina do escultor, havia grande animação. Chegara uma pedra de cantaria, que foi colocada no meio da sala por oito homens possantes. Oito homens, imagine-se! Pesado serviço aquele.

O escultor pagou-lhes e mandou-os embora. Depois olhou para o bloco, acariciou a pedra, deu uma volta por ali e saiu atrás dos carregadores.

A sala ficou vazia de gente, mas continuou cheia de estátuas. Seriam talvez umas dez estátuas dispostas junto às paredes. Algumas já acabadas, prontas para partir, outras à espera que a mão do escultor as desse por terminadas. Após a saída das pessoas, cabia-lhes agora a vez de falarem.

Afinal as estátuas falam? Sim, nas histórias, têm autorização para falar. Vão ouvi-las.

A que estava mais afastada do bloco de pedra perguntou às colegas:
- Que avantesma é aquela?

Houve risinhos entre as estátuas. Então, a que representava a Vaidade declarou:
- Companheiros destes não fazem cá falta, só ocupam espaço e tiram a luz a quem, como eu, precisa de ser destacada.

Era realmente muito vaidosa a estátua da Vaidade.
- A mim é que ela tira a luz - rectificou a estátua que representava um monge sentado a ler um livro. - Estou aqui, há imenso tempo, a ler este alfarrábio e não consigo passar da mesma página.

A estátua do Arlequim também se queixou:
- Aqui abafa-se. Apetecia-me pular e correr, mas esta pedra atravanca tudo.

A estátua do Atlas, o gigante que suportava o mundo sobre os ombros, acudiu:
- Se queres fazer alguma coisa de jeito, segura por um bocadinho na minha carga, porque quase tenho os braços dormentes. De caminho, aproveito e arrasto para outro lado essa maldita pedra, que já me está a causar engulhos.

Mas o Arlequim fez-se desentendido. Não estava para trabalhos.

A estátua inacabada de um rei qualquer ainda murmurou:
- Ordeno que... - mas, como estava muito incompleta, não conseguiu acabar a frase.

Na manhã seguinte, o escultor começou a trabalhar o bloco de pedra. Desbastou-o muito. O penedo foi ganhando forma.

As estátuas em roda olhavam para aquilo em silêncio, desconfiadas. Mal ele abalou, a estátua lá do fundo inquiriu:
- Que irá dali sair?

Respondeu o Arlequim:
- Um elefante, pois. Que outra coisa esperam?

Aquilo, de facto, intrigava. O escultor trabalhou dias a fio e, do coração da pedra, muito lentamente, uma figura começou a erguer-se. Adivinhavam-se os ombros, a cabeça, os joelhos. Parecia uma figura sentada, coberta com um lençol amarrotado.

Durante a noite, as outras estátuas não se calavam.
- Tem um ombro mais alto que o outro - observava uma.
- E uma cabeça monstruosa - acrescentava outra.

Mas a cabeça monstruosa, pela arte do escultor, foi-se transformando numa delicada cabeça de mulher. Estava sentada a estátua. Tinha as mãos no colo, como se guardasse algo, que ainda não conseguia distinguir-se bem.
- Naturalmente está a ler um livro - alvitrava o monge.

Afinal não era um livro o que ela olhava. Era uma criança. O escultor passara o dia a apurar as feições do bebé. No fim, antes de sair, alargou o sorriso da mãe e foi-se embora.

As outras estátuas, muito despeitadas, continuaram na má-língua.
-Que tempo mal-empregado - dizia a estátua da Vaidade.
-Não trocava a minha carga pela daquela mulher - declarava o gigante Atlas.
- Que boneco tão patareco - gargalhava o Arlequim.

Mas uma voz clara e nova naquela sala sobressaiu da restolhada venenosa das outras estátuas, para pronunciar estas palavras:
- Deixem-se de falas! O menino está a dormir.

Inspirava respeito aquela voz. As estátuas calaram-se.

Nos dias que se seguiram, o escultor demorou-se, pela noite adiante, a completar a estátua da mãe e do menino. Era a sua mais bela obra.

António Torrado e Cristina Malaquias, aqui