segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

UM PASTOR DORME DE PÉ

João Direito guarda ovelhas e cabras há 70 anos.

É provavelmente o mais velho pastor da serra da Estrela ainda no activo. Lá no alto da serra, onde passava vários dias seguidos, fazia lume, cozinhava e dormia de pé, para se proteger das tempestades e ver os lobos aproximarem-se. A quarta de cinco reportagens sobre os donos da serra da Estrela.

A partir de Março, era a serra. No Inverno, o gado contentava-se com as terras baixas, aqui nas imediações de Manteigas, mas na Primavera e Verão era preciso ir montanha acima, até aos Cântaros, a Nave de Santo António, a Torre.

Lá, o pasto é mais fresco. "A erva está mais poupadinha." João Direito, de 76 anos, magro e franzino, chapéu cinzento, patilhas abaixo da orelha, pele tisnada e olhos azuis, do mesmo tom do pullover, impecável sobre a camisa aos quadrados, gere com competência toda a erva da serra da Estrela. Conhece todos os pastos, as suas características e variações sazonais. É como se a serra fosse um imenso restaurante onde gosta de levar os seus clientes em exóticos passeios gastronómicos.

"Lá em cima, o gado anda mais fresco. Durante três meses, pelo menos, temos de ir para as partes mais altas. Agora vão menos, só em Julho e Agosto." João também já não vai tanto, devido à idade. Agora tem apenas as suas ovelhas e cabras, 30 destas, 26 daquelas. E a cadela, a Teia, arraçada de serra-da-estrela.

"Lá em cima, os penedos fazem sombra, mantêm a erva fresca e boa. Também servem para dar sombra ao gado, à tarde." Sob os colossais blocos de granito, como o Poio do Judeu, entre a Nave de Santo António e o Covão da Ametade, os pastores dão aos rebanhos abrigo do sol e da chuva. São essas pedras que marcam os percursos, orientam e, muitas vezes, marcam o calendário dos pastores. "As ovelhas precisam mais de altitude. Mas as cabras também gostam."

Quando era mais novo, João chegava a levar mais de mil ovelhas e cabras, de vários proprietários. Avançava para a serra e ficava três, quatro dias, uma semana. "Vinha para baixo quando já estava muito sujo. E quando a comida acabava." Levava um farnel, "um alforge com pão e queijo", e também uma marmita com sopa, para aquecer. Nas estadas mais longas, levava no alforge legumes para cozinhar. "Batatas, vagens de feijão-verde, às vezes. Fazíamos sopa. E pão e queijo ou presunto. Às vezes uma feijoada." Carne ou peixe, raramente levava. "Às vezes, um bocadinho de carne de chanfana. Para aquecer."

Dormir em sobressalto
À noite, no meio da serra, fazia uma fogueira. "Duas pedrinhas assim... E aqui era a panela. E aqui deste lado é que se metiam os paus. Era uma vida linda, já lhe digo. Muito alegre. Melhor do que agora. Fazíamos lume para cozinhar, alumiar e aquecer. E nunca provocámos um incêndio. Agora, que é proibido fazer fogueiras na serra, é que há incêndios."

A seguir ao jantar, à luz da fogueira, era também costume fazer queijo. Levavam-se panos e uma bilha, para pôr o leite a coalhar. Deixava-se ali e ia-se buscar no dia seguinte.

Depois de todas as tarefas, João cobria-se com a capa de lã, encostava-se ao cajado, ou a uma pedra, para dormir. De pé. Porque a serra é imprevisível, de um momento para o outro levanta-se uma tempestade. No Verão, não é provável que neve, mas o vento e a chuva não têm época própria. E, se apanham um pastor deitado, empapam-no de lama e água gelada. Afogam-no ou arrastam-no por uma ribanceira. É muito perigoso dormir deitado.

"Uma vez, levantou-se um vento tão forte, que não conseguimos mover-nos durante dois dias. Abrigámo-nos atrás de uma pedra. Estava eu e outro pastor. As ovelhas ficaram um dia inteiro sem comer nada, coitadinhas. Eram mais de mil. Começou a trovoada, a chuva era cada vez mais forte. Fugimos para baixo de um poio [uma pedra], mas ficámos embaraçados nuns piornos [zonas de arbustos densos], arranhámo-nos todos. A água encharcou as capas, passava por todo o lado. Pensámos que íamos morrer de frio." Conseguiram chegar ao penedo, mas caiu a noite e não foi possível fazer lume. "Eu tinha os fósforos no bolso da camisa, ficaram todos molhados. O vento ia levar-nos pelo ar, se não nos agarrássemos ao poio. Dormimos assim, vergados, agarrados ao poio."

Nem todas as noites havia tempestades, mas dormia-se sempre em sobressalto. Se não soprava o vento, atacavam os lobos. "Era preciso estar atento, porque eles chegavam em alcateias, sem fazer barulho. Às vezes, matavam duas ou três ovelhas, antes que eu desse por alguma coisa. Estava escuro, o lobo vinha, vinha, vinha. Atacava a ovelha pelo pescoço, tudo em silêncio, dava-lhe um safanão, esfarrapava-a, e levava-a de rastos dali para fora."Isto se tinham sorte. Ou sabedoria, no caso de alguns. Um lobo com azar ou falta de experiência atacava uma cabra. Aí, era o fim do mundo. "As cabras, mal sentem o lobo aproximar-se, berram, berram, berram. Até o lobo se assusta com aquilo e às vezes foge. Ou então lá vou eu e os cães atrás deles. Mas as ovelhas não. Ficam caladinhas. O lobo pode atacar, e até comê-las, que não abrem a boca. São assim, é a maneira de ser delas, gostam de sofrer caladas."

É por isso que o pastor tem de dormir de pé, com um olho fechado e o outro aberto. Não era bem dormir. Quando estava com um companheiro, João aproveitava para conversar. Se estava sozinho, punha-se a pensar. Em quê? Em que medita um pastor nas intermináveis noites da serra? "Pensava nos lobos, no tempo que fazia, e no gado, para não lhe acontecer nada. E pensava nas colheitas, na altura certa em que deviam ser feitas, e no feijão, azeite e vinha que tinha plantados lá ao pé de casa", diz João. "Pensava assim numas coisitas. Agora há os telemóveis, e os pastores novos passam a noite a falar ao telemóvel. Mas quase não há pastores novos. Ninguém quer isto. As pessoas preferem ir estudar."

Dos seis aos 76
João Direito nasceu no Mondeguinho, perto da nascente do Mondego. Desde os seis anos, trabalhou na ceifa do centeio. Eram 15 dias a ceifar à mão, e depois a malhar o cereal, na eira. Vinham de todo o lado homens e mulheres, crianças e burros, para fazer a época. Dormiam todos lá, numa roda.

Era um trabalho violento. Um dia faltou um homem e o irmão mais velho de João, que andava a guardar cabras, teve de ir substituí-lo. João, que já tinha 12 anos e alguma experiência de tomar conta de bezerros e burros da lavra, foi chamado a ocupar o lugar do irmão. O rebanho tinha mais de 100 cabras e era guardado por várias crianças. Era uma festa. Andavam na serra todo o dia e não ganhavam quase nada. Recebiam pão, batatas e milho, que entregavam aos pais.

E teve essa profissão toda a vida. Dos seis aos 76. Só com uma interrupção: um dia, vendeu o gado todo que tinha e foi para França. Trabalhou dez anos a instalar postes de electricidade na região de Lyon. "Com pá e picareta, a tirar terra." Já estava casado, mas não levou a família. Não aprendeu francês. "Era só o comer e o dinheirito." Voltou quando ficou doente. "Adoeci dos nervos, no Natal. Que lá é Noel."

O que poupou em França deu para comprar a casa onde vive hoje e andares para os filhos. Tem três, nenhum quis ser pastor. Os netos também não. As ovelhas e as cabras que mantém já quase só servem para o leite. A lã já ninguém a compra, porque as fábricas preferem fios sintéticos importados, mais baratos. "Ainda tosquiamos as ovelhas, apenas porque é melhor para elas."

Nos terrenos verdes e íngremes onde João está a guardar as cabras e as ovelhas, passam riachos sob os arbustos, envolvendo a paisagem num rumorejar intenso e cristalino. A encosta em frente está coberta de pinheiros e arbustos verdes, que envolvem quase completamente as pequenas casas de pedra. Ao longo dos socalcos alcantilados de ambos os lados do vale, adivinham-se rebanhos, pelo ruído ecoante dos chocalhos.

João corre atrás de uma cabra que tenta escapar para uma zona de pasto proibida. "És esperta! Ali é erva poupadinha. Senão, o que vão comer amanhã?" Em toda a sua vida, o pastor já fez várias viagens, esteve em França, visitou uma vez Lisboa, outra a Guarda e outra Folgosinho. Ao cinema foi uma vez, em Manteigas, quando era novo. Aos 76 anos, continua a trabalhar todos os dias. "Tenho de estar sempre com o gado. Se preciso de ir ao médico, pago à hora a alguém para ficar com as ovelhas." Talvez por essa razão, João Direito nunca fica doente. "Gripe, não tenho. Posso estar ao frio, que não apanho nada. E não gosto de agasalhos. Também não gosto de estar ao pé do lume. Quando todos ficam à lareira, eu venho cá para fora."

Paulo Moura, aqui