quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A GENÉTICA VAI REVELAR O MUNDO DOS SACARRABOS

Ao pé de coelhos, raposas e javalis, vive um carnívoro que prolifera cada vez mais. Uma equipa de cientistas está a descobrir os segredos de um animal que tem uma cauda usada para fazer pincéis de óleo.

O jipe voltou a parar pela terceira vez, a poucos metros da armadilha. Apesar de estar vazia como as outras duas armadilhas que tínhamos visto, havia uma diferença, as portinholas laterais estavam fechadas, e não havia nem um pombo morto, nem um pedaço de toucinho pacientemente à espera de serem comidos.

Lá dentro, a prova do crime.
- "Ó engenheiro, é pêlo de sacarrabos ou quê?"
- "É, é. Nitidamente", disse Eduardo Oliveira e Sousa, dono da herdade de Agolada de Baixo, perto de Coruche, no Ribatejo, respondendo a Carlos Fonseca.

O investigador, que estava agachado junto à armadilha, e já nos tinha convidado a cheirar o odor deixado pelo mamífero carnívoro de nome específico Herpestes ichneumon, não descansou antes de abrir a portinhola, esticar o braço lá para dentro e retirar o tufo. Pêlos cinzentos-claros, castanhos-escuros, o esperado.

A atenção do cientista da Universidade de Aveiro desviou-se para as pegadas junto da armadilha. Carlos Fonseca tinha-nos falado da dificuldade em encontrar vestígios do animal: "Eu tenho um molde branco em gesso para as aulas que dou, porque no campo é muito difícil encontrar as pegadas."

Agora, desenhava no caderno uma das duas pegadas que se viam na terra. "A almofada [que o mamífero tem como têm os gatos] é maior, depois temos um, dois, três, quatro dedos afastados", explicou-nos. As pegadas eram a prova da fuga do sacarrabos.

Segundo a teoria proposta ali pelos dois homens, o mamífero tinha aproveitado a folga entre o chão desnivelado e a armadilha para meter a cabeça, empurrar a portinhola para cima e fugir. "Se ele passa a cabeça, passa o corpo todo", constatou Eduardo Oliveira e Sousa, que conhece bem o animal.

Semanas antes tínhamos visto outro indivíduo da espécie, numa gaiola noutro local da Agolada de Baixo. O mamífero, de focinho curto e corpo esguio e comprido, podia perfeitamente passar por um buraco assim.

O sacarrabos ganhou o dia. Senão, o destino deste indivíduo seria igual ao de tantos outros. A espécie é cinegética, todos os anos milhares de sacarrabos são caçados entre Setembro e Fevereiro ou capturados e mortos nos restantes meses, mesmo que não tragam grande benefício para o Homem. A carne não é apreciada e, da pele, o máximo que se pode aproveitar é o final da cauda que serve para fabricar pincéis de óleo.

O sacarrabos perdeu os predadores naturais como o lince-ibérico e o lobo, e mesmo com a pressão dos caçadores continua a expandir o seu território em Portugal, ajudado pelo avanço do mato nos terrenos que deixaram de ser utilizados para a agricultura. Há 20 anos, Castelo Branco seria o limite máximo da sua distribuição, hoje é avistado até em Vinhais, no Norte. Se não for controlado, pode pressionar demasiado as presas, como por exemplo o coelho.

Por esta expansão continuar a aumentar, por se conhecer tão pouco sobre a ecologia da espécie, a genética da população portuguesa, as ligações sociais e o estado sanitário, o grupo de Carlos Fonseca vai utilizar as carcaças recolhidas pelos caçadores de norte a sul do país para fazer análises genéticas aos indivíduos.

"Com a genética podemos determinar quais são as populações que se estão a expandir, se a reprodução é mais robusta nas fronteiras da expansão, como é que são as relações sociais entre os indivíduos", explicou ao P2 Carlos Fonseca. O cientista está à frente de um projecto que vai tirar uma fotografia à ecologia do sacarrabos através da genética. As conclusões podem alterar a forma como a gestão da espécie é feita e ter implicações no ordenamento do território e na conservação de outros animais como o lince-ibérico.

Ele é nosso.
No terreno, as pegadas do carnívoro estão a poucos metros de uma das estradas de terra batida que percorre a herdade de 1500 hectares. Perto passa um curso de água que está escondido por silvas e um arbusto chamado sargaço. Em redor, os eucaliptos altos oferecem manchas de sombra ajudados por alguns pinheiros-mansos. "Este pedacinho de terra é um bom exemplo do que o sacarrabos gosta",disse Carlos Fonseca.

O curso de água proporciona anfíbios ao mamífero e no terreno preenchido por esconderijos podem encontrar-se coelhos, lebres e, provavelmente, ovos de aves.

O engenheiro diz já ter visto um indivíduo com o coelho na boca, mas, apesar do que possa vir na literatura científica, não se sabe ao certo como é o resto da sua alimentação e se existem variações regionais. O projecto da equipa do biólogo também quer responder a estas dúvidas.

O nome do sacarrabos deriva de um comportamento observado na espécie. "Quando se vê um grupo, as fêmeas com a ninhada seguem em fila indiana com a cara dos filhos a tocar na cauda do indivíduo que está à frente, por isso parece que estão a "sacar os rabos"", explicou o cientista. Esta figura também lhes deu o nome de cobra com pêlo, adianta Eduardo Oliveira e Sousa. Mangusto é outro nome comum desta espécie, que em Espanha se chama de meloncillo.

Até agora, pensava-se que este animal endémico de África tinha sido introduzido na Península Ibérica durante a ocupação dos árabes. Estudos recentes mostram que a única população que existe na Europa é mais antiga e passou para cá através do estreito de Gibraltar, durante o processo de glaciação.

"Estamos a publicar uma análise que demonstra que o sacarrabos já existe na Península Ibérica desde o Plistocénico, há cerca de 20 mil anos. É uma espécie que se expandiu, regrediu, expandiu, regrediu [no território ibérico]", explica Carlos Fonseca. O artigo ainda está por publicar, o primeiro autor é Philippe Gaubert, biólogo do Museu de História Natural de Paris, que também estará envolvido no projecto de Fonseca para ajudar à análise genética.

Os resultados, apesar de surpreendentes, podem explicar diferenças no comportamento entre as populações, como a actividade diurna que se vê em Portugal e Espanha, mas que é nocturna nas populações africanas. Durante os últimos milhares de anos, o comportamento dos nossos sacarrabos provavelmente modificou-se.

Safari português.
De regresso ao jipe, o engenheiro levou-nos até ao local onde semanas antes tinha sido capturado o outro sacarrabos. Pela estrada, pode-se ver o milharal rasgado por clareiras feitas pelos javalis. Dos oito hectares de milho que se plantaram na herdade, Eduardo Oliveira e Sousa diz que só se aproveitam "três ou quatro".

De dia, os javalis escondem-se no eucaliptal, de noite fazem incursões no milho e nos campos de arroz, que também é o habitat da lontra, da garça-real, da cegonha e do lagostim-vermelho do Luisiana - uma espécie exótica invasora - que "felizmente" hoje faz parte da dieta das lontras.

No açude da Agolada, onde o engenheiro "não deixa dar um tiro", pode ver-se ainda um bando de patos-bravos, e do lado de lá um pinhal que é visitado por quem quiser. Perto do solar, há ainda um cercado onde estão gamos.

Depois, entra-se na zona dos sobreiros, que têm os troncos despidos de cortiça desde 2007. Uma das árvores, enorme, tem metade dos ramos secos e outra metade cheios de folhas. "Daqui a dois anos esta árvore está morta", especulou o caçador, que ainda não tem uma explicação para a morte súbita de vários sobreiros no terreno, um fenómeno que assola o país.

De repente, uma águia-de-asa-redonda solta-se de uma árvore e voa para outro ramo. É um dos poucos potenciais predadores do sacarrabos. A herdade tem ainda outros carnívoros como a doninha, o texugo, a raposa e o ginete.

Os coelhos são dos animais que mais se vêem pelo campo, mas o seu número já foi bem maior. "Este ano não se vai caçar coelhos, mas os caçadores não acreditam", disse Eduardo Oliveira e Sousa, que também é presidente da Associação Nacional de Proprietários e Produtores de Caça.

Desde 1991 que o terreno é utilizado para caça. "No início caçávamos cinco a seis mil coelhos por época, agora uma época boa são 500 ou 600", tinha-nos contado o caçador. A doença hemorrágica viral e a mixomatose, outra doença causada por um vírus, têm vindo a dizimá-los.

O jipe parou perto da armadilha que tinha capturado o sacarrabos. Estava novamente preparada para atrair outro indivíduo. No meio, um pombo morto pendurado serve de isco, se um indivíduo entra na gaiola e acciona o pedal que está por baixo do isco, as portinholas abertas dos dois lados caem imediatamente e prendem o sacarrabos.

O carnívoro que tínhamos visto era um macho castanho-escuro, tinha menos de um metro de comprimento e estava assustado pela visita. A carcaça do indivíduo vai ser estudada pela equipa. "Como a captura vai ser completamente aleatória,vai ser possível extrapolar a estrutura da população através da genética", adiantou Carlos Fonseca.

Os investigadores poderão compreender qual é a relação entre machos e fêmeas, quantas ninhadas existem por ano, com quantas crias. "Hoje caça-se e captura-se todo o tipo de sacarrabos por uma questão de controlo, não há uma selecção. Estes dados podem dizer se capturamos mais fêmeas ou indivíduos jovens machos para interferir na expansão."

As doenças deste carnívoro estão a ser analisadas pelo Laboratório Nacional de Investigação Veterinária, em Lisboa. Segundo o biólogo, o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade está interessado nesta informação para antecipar as doenças que o lince-ibérico pode estar susceptível nas zonas de reintrodução.

A própria evolução da cobertura vegetal vai ficar retratada. "Osacarrabos vai servir de matéria-prima para o estudo dos ecossistemas do país", concluiu Carlos Fonseca.

No Ano Internacional da Biodiversidade, vamos publicar quinzenalmente, e até Novembro, reportagens sobre os trabalhos que investigadores portugueses desenvolvem em Portugal e no estrangeiro na conservação da natureza. Os conteúdos são da inteira responsabilidade do P2.

Retirada daqui