Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão (Rómulo
de Carvalho)
Não sabia porquê, mas a aviação estava-lhe
na massa do sangue. Desde que se lembra que o seu sonho era ser piloto de aviões.
E voar sempre foi o seu sonho,
porque imaginava ele que, talvez, assim conseguisse ultrapassar os limites do
espaço onde nascera e ver em cada coisa e em cada pessoa aquilo que a define
como especial, como única no mundo. Até porque já tinha ouvido dizer que quem
se atreve a sonhar arrisca-se a que algum dos seus sonhos se realize. Por isso,
sempre que podia, alugava uma avioneta e lá ia dar asas à imaginação, julgando
que nesses momentos era o único dono do mundo.
Perfilada no centro da pista, a
passarola voadora viu aproximar-se o experiente piloto, Job de sua graça, o
carrasco que a havia alugado para o último voo da sua existência.
Depois de rolar pelo alcatrão
pouco mais de uma centena de metros, o bimotor desprendeu-se suavemente do solo
e, numa questão de segundos, já se elevava aos céus e, de asas bem abertas, aí
estava ele, agora nas alturas, a planar.
Job gostava de olhar para as
coisas de fora para dentro, do avesso para o direito… De ver o que muitos
faziam de conta que não viam. E, lá de cima, ao comando do monolugar, onde a
vista alcança até mais longe, consegue mesmo ver o que poucos viam, viajando
sem se cansar, seja qual for a lonjura.
Seriam duas horas a sobrevoar
toda a cidade, que em dia de festa recebia nesse exacto momento a visita de
alguém que aí nunca havia estado e que só aí se tinha deslocado para cumprir a
sua obrigação de governante: inaugurar uma avenida.
– Curioso é o mundo visto aqui
de cima, como quem paira. –
matutava ele com os seus botões... – Aqui, no céu, não há avenidas nem proibições de estacionamento. Não há
carros a circular, vagarosos ou impacientes, nem cruzamentos e encruzilhadas ou
semáforos intermitentes… É tudo livre e desimpedido. É tudo liberdade…
Ainda inebriado por estes
pensamentos, Job depressa desceu à terra ao aperceber-se, lá de cima, de que
poucos pés abaixo de si, havia gente do comércio local que se manifestava
contra a falta de estacionamentos na nova avenida acabada de inaugurar.
Talvez, por isso, aquele dia de
luto iria, certamente, ficar na história da cidade.
Esse, e certamente muitos
outros, como quando por aí desfilarem procissões que, ao compasso das
filarmónicas, deixam no ar o cheiro a alecrim e rosmaninho, seguidas de
intermináveis filas de trânsito. Ou até mesmo quando, céleres como raios, por
aí passarem esguios e transpirados ciclistas em direcção a uma qualquer meta
onde há-de estar alguém a aguardá-los para uma sempre fotogénica entrega de
prémios.
Mas lá de cima nem tudo parece
perfeito e, por vezes, o que se vê nada se coaduna com o que é.
A pista ciclável, por exemplo,
parecia-lhe descontínua. Até parecia que havia mesmo locais onde nem sequer
existia e que nuns pontos surgia encostada aos muros, a ameaçar a segurança dos
utilizadores… A arborização, essa nem sequer conseguia vislumbrar… E os amplos
espaços de lazer e os fartos lugares de estacionamento pareciam, afinal,
espaços minúsculos e reduzidos…
Ah! E lá em cima também não era
possível ver os muros de betão de altíssima qualidade construídos nas testeiras
de alguns (poucos) dos confinantes. Também nem sequer se conseguia aceder à
linha pública de wireless… E tudo
isto Job sabia que existia. O que não deixava de ser estranho, porque até já
lhe tinham dito que há quem, dos aviões, consiga mesmo ver as azeitonas penduradas
nas oliveiras…
Mas Job sabia que Bob, o
construtor da obra, não era responsável por não se ver lá de cima aquilo que
dizem existir, porque, afinal, o projecto da nova avenida até teria na sua
génese a mobilização e o envolvimento efectivo da população local.
O tempo passou veloz e, logo a
seguir, Job voltou à terra. Depois de desligar os motores, pousou a nuca sobre
o já puído mas ainda macio encosto, levou a mão ao peito e sentiu a batida
forte mas compassada do seu coração. E deixou-se estar a sonhar acordado.
Minutos depois, desceu a curta
escada, limpou o suor da testa com a costa da mão, o que mal se explicava
porque não estava calor e até corria uma aragem. Tirou o casaco, abriu ainda
outro botão da camisa e sentiu um arrepio causado por uma ponta de frio que
vinha do norte.
Com uma passada estugada e firme,
dirigiu-se ao escritório do hangar, bateu à porta e, depois de autorizado,
entrou e disse:
– Amigo Mário, acabei de tomar
uma decisão: quero comprar a sua avioneta. Diga-me quanto quer por ela, que eu
não discuto o preço.
Depois de subtrair a avioneta à
morte certa, Job baptizou-a como “Voo da Liberdade” e pôde, finalmente,
realizar o seu sonho de infância, levando a alma para paraísos distantes, de
risos contagiantes e alegrias desmedidas.
Inabalável e com o olhar fixo no
horizonte, o ressuscitado bimotor prometeu a si próprio que nunca trairia a
confiança que Job nele depositara.
Também para Job, o dia fora
inesquecível…