sábado, 1 de agosto de 2015

O VOO DA LIBERDADE



Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão (Rómulo de Carvalho)

Não sabia porquê, mas a aviação estava-lhe na massa do sangue. Desde que se lembra que o seu sonho era ser piloto de aviões. 

E voar sempre foi o seu sonho, porque imaginava ele que, talvez, assim conseguisse ultrapassar os limites do espaço onde nascera e ver em cada coisa e em cada pessoa aquilo que a define como especial, como única no mundo. Até porque já tinha ouvido dizer que quem se atreve a sonhar arrisca-se a que algum dos seus sonhos se realize. Por isso, sempre que podia, alugava uma avioneta e lá ia dar asas à imaginação, julgando que nesses momentos era o único dono do mundo.


Perfilada no centro da pista, a passarola voadora viu aproximar-se o experiente piloto, Job de sua graça, o carrasco que a havia alugado para o último voo da sua existência.

Depois de rolar pelo alcatrão pouco mais de uma centena de metros, o bimotor desprendeu-se suavemente do solo e, numa questão de segundos, já se elevava aos céus e, de asas bem abertas, aí estava ele, agora nas alturas, a planar.

Job gostava de olhar para as coisas de fora para dentro, do avesso para o direito… De ver o que muitos faziam de conta que não viam. E, lá de cima, ao comando do monolugar, onde a vista alcança até mais longe, consegue mesmo ver o que poucos viam, viajando sem se cansar, seja qual for a lonjura.

Seriam duas horas a sobrevoar toda a cidade, que em dia de festa recebia nesse exacto momento a visita de alguém que aí nunca havia estado e que só aí se tinha deslocado para cumprir a sua obrigação de governante: inaugurar uma avenida.
Curioso é o mundo visto aqui de cima, como quem paira. matutava ele com os seus botões... Aqui, no céu, não há avenidas nem proibições de estacionamento. Não há carros a circular, vagarosos ou impacientes, nem cruzamentos e encruzilhadas ou semáforos intermitentes… É tudo livre e desimpedido. É tudo liberdade…

Ainda inebriado por estes pensamentos, Job depressa desceu à terra ao aperceber-se, lá de cima, de que poucos pés abaixo de si, havia gente do comércio local que se manifestava contra a falta de estacionamentos na nova avenida acabada de inaugurar.

Talvez, por isso, aquele dia de luto iria, certamente, ficar na história da cidade.

Esse, e certamente muitos outros, como quando por aí desfilarem procissões que, ao compasso das filarmónicas, deixam no ar o cheiro a alecrim e rosmaninho, seguidas de intermináveis filas de trânsito. Ou até mesmo quando, céleres como raios, por aí passarem esguios e transpirados ciclistas em direcção a uma qualquer meta onde há-de estar alguém a aguardá-los para uma sempre fotogénica entrega de prémios.

Mas lá de cima nem tudo parece perfeito e, por vezes, o que se vê nada se coaduna com o que é.

A pista ciclável, por exemplo, parecia-lhe descontínua. Até parecia que havia mesmo locais onde nem sequer existia e que nuns pontos surgia encostada aos muros, a ameaçar a segurança dos utilizadores… A arborização, essa nem sequer conseguia vislumbrar… E os amplos espaços de lazer e os fartos lugares de estacionamento pareciam, afinal, espaços minúsculos e reduzidos…

Ah! E lá em cima também não era possível ver os muros de betão de altíssima qualidade construídos nas testeiras de alguns (poucos) dos confinantes. Também nem sequer se conseguia aceder à linha pública de wireless… E tudo isto Job sabia que existia. O que não deixava de ser estranho, porque até já lhe tinham dito que há quem, dos aviões, consiga mesmo ver as azeitonas penduradas nas oliveiras…

Mas Job sabia que Bob, o construtor da obra, não era responsável por não se ver lá de cima aquilo que dizem existir, porque, afinal, o projecto da nova avenida até teria na sua génese a mobilização e o envolvimento efectivo da população local.

O tempo passou veloz e, logo a seguir, Job voltou à terra. Depois de desligar os motores, pousou a nuca sobre o já puído mas ainda macio encosto, levou a mão ao peito e sentiu a batida forte mas compassada do seu coração. E deixou-se estar a sonhar  acordado.

Minutos depois, desceu a curta escada, limpou o suor da testa com a costa da mão, o que mal se explicava porque não estava calor e até corria uma aragem. Tirou o casaco, abriu ainda outro botão da camisa e sentiu um arrepio causado por uma ponta de frio que vinha do norte.

Com uma passada estugada e firme, dirigiu-se ao escritório do hangar, bateu à porta e, depois de autorizado, entrou e disse:
Amigo Mário, acabei de tomar uma decisão: quero comprar a sua avioneta. Diga-me quanto quer por ela, que eu não discuto o preço.

Depois de subtrair a avioneta à morte certa, Job baptizou-a como “Voo da Liberdade” e pôde, finalmente, realizar o seu sonho de infância, levando a alma para paraísos distantes, de risos contagiantes e alegrias desmedidas.

Inabalável e com o olhar fixo no horizonte, o ressuscitado bimotor prometeu a si próprio que nunca trairia a confiança que Job nele depositara.

Também para Job, o dia fora inesquecível…