sábado, 4 de julho de 2015

CARTA À TIA ASSUNÇÃO (ou uma perspectiva lúcida sobre a reorganização administrativa em Oliveira do Bairro)



Cada um descobre o seu anjo
 tendo um caso com o demónio.

Mia Couto

Tia Assunção,

Espero que se encontre bem e que o reumatismo já tenha deixado de incomodar o Tio Aníbal.

Nós por cá estamos todos bem, graças a Deus, pese embora umas dores de cabeça que tenho tido nas tardes das últimas quintas-feiras. Mas nada de grave, felizmente!

Agradeço a carta que me enviou e compreendo a sua preocupação com os zunzuns que vai ouvindo sobre a possibilidade de duas das nossas freguesias poderem ser extintas. Deixe-me, no entanto, que lhe diga que a questão não é bem assim como diz.

Sei que a Tia é uma pessoa que se preocupa com tudo o que toca na terra que a viu nascer, mas permita-me que lhe diga também que a organização administrativa como estratégia de desenvolvimento do território nacional tem uma história já longínqua, havendo necessidade de recuar ao período de ocupação romana para conhecer a primeira divisão administrativa.

Desta forma, decorreram mais de vinte séculos de divisões territoriais que foram adaptando as potencialidades regionais específicas à coesão territorial.

Se bem se lembra, aquele velho livro de História que encontrámos em casa do meu bisavô Mário, na Quinta do Cavaleiro, diz que o actual mapa administrativo começou a ser desenhado em 1830, há mais de 180 anos, portanto.

Foi por isso que na semana passada, quando falámos sobre esta questão em casa do Primo Martins, no Albergue, eu lhe disse que, perante a actual e espartilhada estrutura territorial e administrativa não podemos, em consciência, afirmar que Portugal entrou no século XXI com uma organização administrativa ao serviço dos interesses do país e das populações.

Recordar-se-á, com certeza, de eu lhe ter dito que hoje em dia os municípios são cada vez mais vistos como unidades de negócio que têm que desenvolver a sua estratégia de atracção de investimentos e estimular a localização industrial. Mas, para isso, têm que ter dimensão.

E também me lembro do olhar de espanto do nosso Primo Duarte, da Azurveira, quando eu disse que, não obstante a sua autonomia relativamente aos municípios, o quotidiano dos presidentes de junta é um diário “estender de mão” às câmaras municipais, em permanente condicionamento do livre exercício do seu mandato em função da subalternização financeira a que estão votadas as juntas de freguesia que lideram.

E o nosso Primo Manuel, da Caneira, só ficou descansado quando me ouviu reconhecer que, apesar disso, e mesmo vivendo com enormes dificuldades e constrangimentos, as 4.259 freguesias existentes continuam a desempenhar um papel importante junto das comunidades locais.

Mas quem ficou mesmo muito admirado foi o Primo Cruz, da Limeira, quando eu lhe disse que há concelhos como o de Sabugal (823Km2 / 12.544 habitantes), cujos 40 presidentes de juntas de freguesia integram uma assembleia municipal com 81 membros, dos quais apenas 41 são efectivos. E que também existem casos no extremo oposto, de que é exemplo paradigmático o concelho de Barcelos (379Km2 / 120.492 habitantes) cujos 89 presidentes de juntas de freguesia integram uma assembleia municipal com 179 membros, dos quais apenas 90 são efectivos.

Mas, minha Tia, reconheço que este argumento, por si só, não é suficiente para convencê-la da bondade de uma estratégia agregadora das freguesias, formando um espaço com maior dimensão e com uma superior capacidade reivindicativa, para que deixem de ser uma espécie de “parentes pobres” do sistema político português.

Só que, além deste, também há outros argumentos: refiro-me ao reforço da coesão nacional, à melhoria da prestação dos serviços públicos locais e ao facto de a optimização da actividade dos diversos entes autárquicos constituírem objectivos prioritários do governo.

Bem sei que a Tia é da opinião que esta reorganização administrativa belisca o reconhecimento da identidade histórica e cultural das comunidades locais, cujas freguesias venham a ser agregadas. Disse-me isso ao telefone, quando me comunicou a hora do funeral da Dª Esmeralda, da Quinta das Martinhas, e não mudou de opinião mesmo depois de eu lhe ter dito que a matriz da reorganização administrativa aliaria a gestão de todo o património agregado aos princípios do respeito pela boa administração e da salvaguarda dos serviços públicos que, pela sua imprescindibilidade e sustentabilidade, deverão continuar a ser prestados às populações locais das freguesias agregadas.

E lembro-me bem de como estava zangada quando falámos da majoração de 15% da participação no Fundo de Financiamento de Freguesias (FFF), até ao final do mandato seguinte à fusão de freguesias, ao dizer-me que os coelhos das aldeias não dão passos para comer cenouras.

Apesar disso, a Tia sabe bem o que é que eu penso sobre esta questão: acho que a reorganização administrativa deve ser feita e que não devia limitar-se ao mero cumprimento da lei ou cingir-se ao estrito cumprimento de critérios matemáticos ou numéricos, de régua e esquadro. Pelo contrário, devia ter-se nesta reforma uma oportunidade para atalhar eventuais assimetrias nivelando a escala, a massa crítica e a dimensão humana de todas as freguesias do concelho, como forma de aumentar a qualidade de vida das suas populações. E digo isto, porque entendo uma reorganização administrativa como um instrumento de cariz operativo e estratégico, em resultado da qual há-de sair reforçada a atractividade e a competitividade da oferta territorial do município, junto dos segmentos alvo, ou seja, dos actuais e potenciais utilizadores do território, numa perspectiva de afirmar Oliveira do Bairro no panorama regional e nacional.

Bem sei que a Tia, tal como a grande parte dos fregueses e munícipes do concelho, não concorda comigo. E ainda que eu venha conseguindo rebater, um a um, todos os motivos que a Tia me tem apresentado em desfavor da reorganização administrativa, tenho de reconhecer que há uma razão contra a qual não tenho argumentação possível: refiro-me ao sentimento de pertença identitária das gentes de cada freguesia!

É que toda e qualquer agregação é potencialmente geradora de expectável divergência e conflitualidade social, uma vez que a perspectiva da agregação de freguesias, sejam elas quais forem e sejam quais forem os critérios utilizados, determinará sempre um sentimento de subordinação, gerando uma nada interessante perturbação do clima de serenidade e de paz social existente, e que nenhum interesse justifica que seja beliscado num concelho de tão pequena dimensão (87,28 Km2).

E a Tia nem precisa de me alertar para a eficácia do trabalho das actuais juntas de freguesia, o qual tem o reconhecimento das suas populações, associações, colectividades e instituições. A Tia refere-se também à celeuma que se levantaria em relação ao reajustamento paroquial decorrente da agregação de freguesias. Mas, quanto a isto, pode ficar descansada, porque nada disso aconteceria.

Eu falei com o Cónego Melo, no final de uma missa no Silveiro, e ele disse-me que a lei canónica não faz coincidir as paróquias às freguesias, como também não faz coincidir os arciprestados aos concelhos. É esta a razão pela qual o arciprestado de Oliveira do Bairro é constituído não só pelas paróquias deste concelho (Bustos, Mamarrosa, Oiã, Oliveira do Bairro, Palhaça e Troviscal) mas também por paróquias dos concelhos de Aveiro (Nariz), de Águeda (Fermentelos) e de Anadia (Sangalhos e Amoreira da Gândara).

Assim sendo, mesmo que houvesse agregação das actuais freguesias, cada uma das paróquias actualmente existentes manteria o respectivo orago, tal como cada um dos lugares manteria intocada a respectiva história e padroeiro.

Bem sei que, enquanto eleito local, estou investido na função de fazer de Oliveira do Bairro um concelho moderno e atractivo, de economia saudável e forte vitalidade sociocultural. E, principalmente, fazer de Oliveira do Bairro um concelho capaz de ultrapassar o seu carácter territorial como espaço dormitório daquela população que, embora nele residindo, não o conhece, não o vive, não o goza e não o desfruta.

E do meu ponto de vista, a reorganização administrativa contribuiria para esse objectivo e as populações beneficiariam com isso.

Mas isso é o que eu penso. Por aquilo que me tem sido dito pelo Primo Zeca, do Passadouro, que é electricista e conhece toda a gente, não é isso que pensam os troviscalenses e os mamarrosenses. E a Célia, que é carteira e faz o giro da Palhaça, também diz que toda a malta de lá torce o nariz à agregação das freguesias. Opinião idêntica tem o Dr. Amaral, que é médico no Centro de Saúde e já comentou comigo dizendo que a opinião generalizada dos bustoenses também é desfavorável. Não só em relação à agregação de freguesias mas em relação a qualquer coisa que mexa com a sua querida freguesia; mesmo que sejam coisas paradas como os caulinos, a água das lagoas ou os inertes…

Enfim, é o que ele diz… Que eu não sei de nada, porque nunca me deram conhecimento disso. Nem a mim nem ao presidente da Junta que, não desfazendo, é uma jóia de rapaz.

Quanto às outras freguesias, falei ontem com o meu compadre Serafim, que tem uma pastelaria em Oliveira do Bairro e outra em Oiã, e o que ele me disse é que em Oiã não se fala muito disso. Dizem que o Primo Reis, das Agras, está muito confiante na dimensão da freguesia…

Quanto aos de Oliveira, ele acha que, neste momento, estão mais preocupados com o pó, com a lama e com os buracos que há no lugar urbano…

Como já lhe disse mais do que uma vez, penso que a matriz reformadora contribui para a homogeneidade da organização do território concelhio, sem afectação da identidade, da cultura, do património, das tradições e dos muitos anos de história das populações de cada lugar, que lutaram e construíram um poder local democrático com o objectivo de melhorar as condições de vida nos seus locais de residência. Mas essa reforma só poderia ir por diante se fosse aprovada pela assembleia municipal.

E, como a Tia muito bem sabe, estamos em democracia, e como dizia o falecido Tio Anacleto, da Fonte Bebe e Vai-te, na Palhaça, em democracia quem manda são os eleitores, muito embora haja por aí uns engravatadinhos que pensam que mandam só por terem sido eleitos.

Eu acredito muito na democracia e acho que em Oliveira do Bairro será tomada uma deliberação que será reconhecida como uma prova de verdadeira maturidade dos seus autarcas. Por isso, minha Tia, o que eu penso que vai acontecer é que a câmara irá ter uma iniciativa e a assembleia municipal irá emitir uma pronúncia. E que esta secundará a orientação que lhe for dada pelos eleitores através dos pareceres que lhe forem apresentados pelas assembleias de freguesia. Uma pronúncia que pode muito bem passar pela demonstração da vontade da maioria dos fregueses do município, em ver mantido o número de freguesias do concelho, se os pareceres das outras assembleias de freguesia forem iguais ao que já foi emitido pela assembleia de freguesia de Mamarrosa!

Afinal, a assembleia municipal representa o município, o concelho de Oliveira do Bairro e a vontade das suas gentes, da mesma forma que as assembleias de freguesia representam a vontade dos seus fregueses. E poderá muito bem ser esse o caminho a percorrer, porque os eleitos só podem exercer o seu direito de voto para expressar a vontade dos seus eleitores e não para expressar qualquer outra vontade, designadamente a sua.

Sabe, Tia, a história e a identidade das comunidades é um processo mutável, evolutivo e dinâmico, e a realidade da sociedade dos dias de hoje não se compadece com bairrismos e “conflitualidade de tradições”. Mas à população e aos órgãos do poder local, seja de Oliveira do Bairro seja de qualquer outro município do país, não se pode exigir que assumam o ónus de mudar em três meses uma estrutura administrativa que os governos da república não foram capazes de mudar em mais de dezoito décadas.

Afinal, os grandes momentos da História fazem-se com a união de todos, porque serão maiores as similitudes que unem os oliveirenses das diversas freguesias do que aquilo que os separa.

Se assim tiver de ser, pronunciando-se a assembleia municipal dessa forma, talvez tenhamos ministros e deputados da assembleia da República a pisar a relva do concelho para baterem às portas da Dª Helena, da Picada, da Enfermeira Teresa, da Póvoa do Forno, do Tio Inocêncio, de Malhapãozinho e da cabeleireira Gina, da Pedreira, para, olhos nos olhos, lhes explicarem as vantagens da reorganização administrativa do território das freguesias de Oliveira do Bairro.

É que há políticos tão distraídos, que até esquecem que há um artigo na Constituição da República, o 48, segundo o qual todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos.

Eu, por mim, dispenso a explicação, porque já percebi e concordo. No entanto, enquanto autarca, não posso vincular com o meu voto um eleitorado que pensa o contrário do que eu penso, seja porque conhece mal a lei, seja porque a conhece bem e dela discorda.

Já agora, que ninguém nos ouve, digo-lhe isto: se nós não somos capazes de atribuir identidade e autonomia própria aos lugares, decidindo se a Pedreira é de Oiã ou da Palhaça, ou se o lugar das Sudas pertence à Giesta, a Perrães ou a Oiã, por que haveríamos de nos armar em carapaus de corrida e agregar freguesias?

Querida Tia, vou fazer-lhe uma confissão: este assunto dá-me volta à cabeça e há 48 horas que não prego olho… E este número, o 48, atormenta-me a alma e persegue-me… Não me sai da cabeça… É que é exactamente o número do tal artigo da Constituição que diz que todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos. É por isso que quando eu for chamado a votar sobre esta situação, o meu voto vai ter de traduzir a vontade de quem me elegeu e não a minha própria vontade…

Sabe, Tia, os maiores bens que herdei do meu Pai foram a honestidade e a lealdade. Ao jurar solenemente pela minha honra desempenhar com lealdade as funções que me foram confiadas, o que me cumpre, enquanto eleito local, é interiorizar a responsabilidade de que ocupo um cargo público num órgão que integra a organização democrática do Estado.

Fique descansada que não atraiçoarei a memória do seu Irmão gémeo. Ao meu Pai, Deus o tenha em descanso. Nunca farei isso.

Fico-me por aqui, que a conversa já vai longa e a Maria já me chama para o jantar.

A chouriça é caseira e os grelos são da nossa horta. Quanto ao vinho, bom… O vinho tive que o comprar, porque em casa só tinha mesmo espumante de rolha grande.

À Tia que amo e respeito, e que tão pacientemente me ouve, um beijo do sobrinho amigo,

Job.