Cada um descobre o seu anjo
tendo
um caso com o demónio.
Mia Couto
Tia Assunção,
Espero que se encontre bem e que
o reumatismo já tenha deixado de incomodar o Tio Aníbal.
Nós por cá estamos todos bem,
graças a Deus, pese embora umas dores de cabeça que tenho tido nas tardes das
últimas quintas-feiras. Mas nada de grave, felizmente!
Sei que a Tia é uma pessoa que
se preocupa com tudo o que toca na terra que a viu nascer, mas permita-me que
lhe diga também que a organização administrativa como estratégia de
desenvolvimento do território nacional tem uma história já longínqua, havendo
necessidade de recuar ao período de ocupação romana para conhecer a primeira
divisão administrativa.
Desta forma, decorreram mais de
vinte séculos de divisões territoriais que foram adaptando as potencialidades
regionais específicas à coesão territorial.
Se bem se lembra, aquele velho
livro de História que encontrámos em casa do meu bisavô Mário, na Quinta do
Cavaleiro, diz que o actual mapa administrativo começou a ser desenhado em
1830, há mais de 180 anos, portanto.
Foi por isso que na semana
passada, quando falámos sobre esta questão em casa do Primo Martins, no
Albergue, eu lhe disse que, perante a actual e espartilhada estrutura
territorial e administrativa não podemos, em consciência, afirmar que Portugal
entrou no século XXI com uma organização administrativa ao serviço dos
interesses do país e das populações.
Recordar-se-á, com certeza, de
eu lhe ter dito que hoje em dia os municípios são cada vez mais vistos como
unidades de negócio que têm que desenvolver a sua estratégia de atracção de
investimentos e estimular a localização industrial. Mas, para isso, têm que ter
dimensão.
E também me lembro do olhar de
espanto do nosso Primo Duarte, da Azurveira, quando eu disse que, não obstante
a sua autonomia relativamente aos municípios, o quotidiano dos presidentes de
junta é um diário “estender de mão” às câmaras municipais, em permanente
condicionamento do livre exercício do seu mandato em função da subalternização
financeira a que estão votadas as juntas de freguesia que lideram.
E o nosso Primo Manuel, da
Caneira, só ficou descansado quando me ouviu reconhecer que, apesar disso, e
mesmo vivendo com enormes dificuldades e constrangimentos, as 4.259 freguesias
existentes continuam a desempenhar um papel importante junto das comunidades
locais.
Mas quem ficou mesmo muito admirado
foi o Primo Cruz, da Limeira, quando eu lhe disse que há concelhos como o de
Sabugal (823Km2 / 12.544 habitantes), cujos 40 presidentes de juntas
de freguesia integram uma assembleia municipal com 81 membros, dos quais apenas
41 são efectivos. E que também existem casos no extremo oposto, de que é
exemplo paradigmático o concelho de Barcelos (379Km2 / 120.492
habitantes) cujos 89 presidentes de juntas de freguesia integram uma assembleia
municipal com 179 membros, dos quais apenas 90 são efectivos.
Mas, minha Tia, reconheço que
este argumento, por si só, não é suficiente para convencê-la da bondade de uma
estratégia agregadora das freguesias, formando um espaço com maior dimensão e
com uma superior capacidade reivindicativa, para que deixem de ser uma espécie
de “parentes pobres” do sistema político português.
Só que, além deste, também há
outros argumentos: refiro-me ao reforço da coesão nacional, à melhoria da
prestação dos serviços públicos locais e ao facto de a optimização da
actividade dos diversos entes autárquicos constituírem objectivos prioritários
do governo.
Bem sei que a Tia é da opinião
que esta reorganização administrativa belisca o reconhecimento da identidade
histórica e cultural das comunidades locais, cujas freguesias venham a ser
agregadas. Disse-me isso ao telefone, quando me comunicou a hora do funeral da
Dª Esmeralda, da Quinta das Martinhas, e não mudou de opinião mesmo depois de
eu lhe ter dito que a matriz da reorganização administrativa aliaria a gestão
de todo o património agregado aos princípios do respeito pela boa administração
e da salvaguarda dos serviços públicos que, pela sua imprescindibilidade e
sustentabilidade, deverão continuar a ser prestados às populações locais das
freguesias agregadas.
E lembro-me bem de como estava
zangada quando falámos da majoração de 15% da participação no Fundo de
Financiamento de Freguesias (FFF), até ao final do mandato seguinte à fusão de
freguesias, ao dizer-me que os coelhos das aldeias não dão passos para comer
cenouras.
Apesar disso, a Tia sabe bem o
que é que eu penso sobre esta questão: acho que a reorganização administrativa
deve ser feita e que não devia limitar-se ao mero cumprimento da lei ou
cingir-se ao estrito cumprimento de critérios matemáticos ou numéricos, de
régua e esquadro. Pelo contrário, devia ter-se nesta reforma uma oportunidade
para atalhar eventuais assimetrias nivelando a escala, a massa crítica e a
dimensão humana de todas as freguesias do concelho, como forma de aumentar a
qualidade de vida das suas populações. E digo isto, porque entendo uma
reorganização administrativa como um instrumento de cariz operativo e
estratégico, em resultado da qual há-de sair reforçada a atractividade e a
competitividade da oferta territorial do município, junto dos segmentos alvo,
ou seja, dos actuais e potenciais utilizadores do território, numa perspectiva
de afirmar Oliveira do Bairro no panorama regional e nacional.
Bem sei que a Tia, tal como a
grande parte dos fregueses e munícipes do concelho, não concorda comigo. E
ainda que eu venha conseguindo rebater, um a um, todos os motivos que a Tia me
tem apresentado em desfavor da reorganização administrativa, tenho de
reconhecer que há uma razão contra a qual não tenho argumentação possível:
refiro-me ao sentimento de pertença identitária das gentes de cada freguesia!
É que toda e qualquer agregação
é potencialmente geradora de expectável divergência e conflitualidade social,
uma vez que a perspectiva da agregação de freguesias, sejam elas quais forem e
sejam quais forem os critérios utilizados, determinará sempre um sentimento de
subordinação, gerando uma nada interessante perturbação do clima de serenidade
e de paz social existente, e que nenhum interesse justifica que seja beliscado
num concelho de tão pequena dimensão (87,28 Km2).
E a Tia nem precisa de me
alertar para a eficácia do trabalho das actuais juntas de freguesia, o qual tem
o reconhecimento das suas populações, associações, colectividades e
instituições. A Tia refere-se também à celeuma que se levantaria em relação ao
reajustamento paroquial decorrente da agregação de freguesias. Mas, quanto a
isto, pode ficar descansada, porque nada disso aconteceria.
Eu falei com o Cónego Melo, no
final de uma missa no Silveiro, e ele disse-me que a lei canónica não faz
coincidir as paróquias às freguesias, como também não faz coincidir os
arciprestados aos concelhos. É esta a razão pela qual o arciprestado de
Oliveira do Bairro é constituído não só pelas paróquias deste concelho (Bustos,
Mamarrosa, Oiã, Oliveira do Bairro, Palhaça e Troviscal) mas também por
paróquias dos concelhos de Aveiro (Nariz), de Águeda (Fermentelos) e de Anadia
(Sangalhos e Amoreira da Gândara).
Assim sendo, mesmo que houvesse
agregação das actuais freguesias, cada uma das paróquias actualmente existentes
manteria o respectivo orago, tal como cada um dos lugares manteria intocada a
respectiva história e padroeiro.
Bem sei que, enquanto eleito
local, estou investido na função de fazer de Oliveira do Bairro um concelho
moderno e atractivo, de economia saudável e forte vitalidade sociocultural. E,
principalmente, fazer de Oliveira do Bairro um concelho capaz de ultrapassar o
seu carácter territorial como espaço dormitório daquela população que, embora
nele residindo, não o conhece, não o vive, não o goza e não o desfruta.
E do meu ponto de vista, a
reorganização administrativa contribuiria para esse objectivo e as populações
beneficiariam com isso.
Mas isso é o que eu penso. Por
aquilo que me tem sido dito pelo Primo Zeca, do Passadouro, que é electricista
e conhece toda a gente, não é isso que pensam os troviscalenses e os
mamarrosenses. E a Célia, que é carteira e faz o giro da Palhaça, também diz
que toda a malta de lá torce o nariz à agregação das freguesias. Opinião
idêntica tem o Dr. Amaral, que é médico no Centro de Saúde e já comentou comigo
dizendo que a opinião generalizada dos bustoenses também é desfavorável. Não só
em relação à agregação de freguesias mas em relação a qualquer coisa que mexa
com a sua querida freguesia; mesmo que sejam coisas paradas como os caulinos, a
água das lagoas ou os inertes…
Enfim, é o que ele diz… Que eu
não sei de nada, porque nunca me deram conhecimento disso. Nem a mim nem ao
presidente da Junta que, não desfazendo, é uma jóia de rapaz.
Quanto às outras freguesias,
falei ontem com o meu compadre Serafim, que tem uma pastelaria em Oliveira do
Bairro e outra em Oiã, e o que ele me disse é que em Oiã não se fala muito
disso. Dizem que o Primo Reis, das Agras, está muito confiante na dimensão da
freguesia…
Quanto aos de Oliveira, ele acha
que, neste momento, estão mais preocupados com o pó, com a lama e com os
buracos que há no lugar urbano…
Como já lhe disse mais do que
uma vez, penso que a matriz reformadora contribui para a homogeneidade da
organização do território concelhio, sem afectação da identidade, da cultura,
do património, das tradições e dos muitos anos de história das populações de
cada lugar, que lutaram e construíram um poder local democrático com o
objectivo de melhorar as condições de vida nos seus locais de residência. Mas
essa reforma só poderia ir por diante se fosse aprovada pela assembleia
municipal.
E, como a Tia muito bem sabe,
estamos em democracia, e como dizia o falecido Tio Anacleto, da Fonte Bebe e
Vai-te, na Palhaça, em democracia quem manda são os eleitores, muito embora
haja por aí uns engravatadinhos que pensam que mandam só por terem sido eleitos.
Eu acredito muito na democracia
e acho que em Oliveira do Bairro será tomada uma deliberação que será
reconhecida como uma prova de verdadeira maturidade dos seus autarcas. Por
isso, minha Tia, o que eu penso que vai acontecer é que a câmara irá ter uma
iniciativa e a assembleia municipal irá emitir uma pronúncia. E que esta
secundará a orientação que lhe for dada pelos eleitores através dos pareceres
que lhe forem apresentados pelas assembleias de freguesia. Uma pronúncia que
pode muito bem passar pela demonstração da vontade da maioria dos fregueses do
município, em ver mantido o número de freguesias do concelho, se os pareceres
das outras assembleias de freguesia forem iguais ao que já foi emitido pela
assembleia de freguesia de Mamarrosa!
Afinal, a assembleia municipal
representa o município, o concelho de Oliveira do Bairro e a vontade das suas
gentes, da mesma forma que as assembleias de freguesia representam a vontade
dos seus fregueses. E poderá muito bem ser esse o caminho a percorrer, porque
os eleitos só podem exercer o seu direito de voto para expressar a vontade dos
seus eleitores e não para expressar qualquer outra vontade, designadamente a
sua.
Sabe, Tia, a história e a
identidade das comunidades é um processo mutável, evolutivo e dinâmico, e a
realidade da sociedade dos dias de hoje não se compadece com bairrismos e “conflitualidade
de tradições”. Mas à população e aos órgãos do poder local, seja de Oliveira do
Bairro seja de qualquer outro município do país, não se pode exigir que assumam
o ónus de mudar em três meses uma estrutura administrativa que os governos da
república não foram capazes de mudar em mais de dezoito décadas.
Afinal, os grandes momentos da História
fazem-se com a união de todos, porque serão maiores as similitudes que unem os
oliveirenses das diversas freguesias do que aquilo que os separa.
Se assim tiver de ser,
pronunciando-se a assembleia municipal dessa forma, talvez tenhamos ministros e
deputados da assembleia da República a pisar a relva do concelho para baterem às
portas da Dª Helena, da Picada, da Enfermeira Teresa, da Póvoa do Forno, do Tio
Inocêncio, de Malhapãozinho e da cabeleireira Gina, da Pedreira, para, olhos
nos olhos, lhes explicarem as vantagens da reorganização administrativa do
território das freguesias de Oliveira do Bairro.
É que há políticos tão
distraídos, que até esquecem que há um artigo na Constituição da República, o
48, segundo o qual todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos
objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser
informados pelo governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos
públicos.
Eu, por mim, dispenso a
explicação, porque já percebi e concordo. No entanto, enquanto autarca, não
posso vincular com o meu voto um eleitorado que pensa o contrário do que eu
penso, seja porque conhece mal a lei, seja porque a conhece bem e dela
discorda.
Já agora, que ninguém nos ouve,
digo-lhe isto: se nós não somos capazes de atribuir identidade e autonomia
própria aos lugares, decidindo se a Pedreira é de Oiã ou da Palhaça, ou se o
lugar das Sudas pertence à Giesta, a Perrães ou a Oiã, por que haveríamos de
nos armar em carapaus de corrida e agregar freguesias?
Querida Tia, vou fazer-lhe uma
confissão: este assunto dá-me volta à cabeça e há 48 horas que não prego olho… E
este número, o 48, atormenta-me a alma e persegue-me… Não me sai da cabeça… É
que é exactamente o número do tal artigo da Constituição que diz que todos os
cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos
assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes
livremente eleitos. É por isso que quando eu for chamado a votar sobre esta
situação, o meu voto vai ter de traduzir a vontade de quem me elegeu e não a
minha própria vontade…
Sabe, Tia, os maiores bens que
herdei do meu Pai foram a honestidade e a lealdade. Ao jurar solenemente pela
minha honra desempenhar com lealdade as funções que me foram confiadas, o que
me cumpre, enquanto eleito local, é interiorizar a responsabilidade de que
ocupo um cargo público num órgão que integra a organização democrática do
Estado.
Fique descansada que não
atraiçoarei a memória do seu Irmão gémeo. Ao meu Pai, Deus o tenha em descanso.
Nunca farei isso.
Fico-me por aqui, que a conversa
já vai longa e a Maria já me chama para o jantar.
A chouriça é caseira e os grelos
são da nossa horta. Quanto ao vinho, bom… O vinho tive que o comprar, porque em
casa só tinha mesmo espumante de rolha grande.
À Tia que amo e respeito, e que
tão pacientemente me ouve, um beijo do sobrinho amigo,
Job.