É preciso viver,
viver como homem comum
entre homens comuns.
Só um homem comum
pode fazer grandes coisas.
António Lobo Antunes
A saída era daí a uma hora, mas
o despertador tocou às 4h:45.
Para trás, uma noite mal dormida
de véspera de feriado. Pela frente, a garantia de um dia intenso em mais uma
presença da mais antiga colectividade do concelho de Águeda numa das maiores
festas populares do país, o S. João de Braga, uma oportunidade de convívio
entre amigos e conhecidos, entre vizinhos e forasteiros, que cumpre uma matriz
religioso-cultural evocando o seu santo precursor, e que se renova em cada ano
que passa.
Logo pela manhã, cerca das 8h:00,
seis bandas filarmónicas, uma dúzia de grupos de zés p’reiras, bombos,
gaiteiros, gigantones e cabeçudos, e outra dúzia de grupos folclóricos, rusgas
e tocatas, convergem de várias ruas e praças da milenar cidade dos arcebispos e
dirigem-se para a avenida central. De seguida, partem em desfile até à Praça do
Município para apresentação de cumprimentos às autoridades civis, militares e
religiosas, entremeados por grupos de rapazes e raparigas com trajes de romaria
empunhando arcos de S. João, num percurso que, não sendo longo, garante a
execução de duas ou três marchas de rua.
Aí chegados, em frente aos Paços
de Concelho, muita cor e muito brilho na cerimónia solene do hastear das
bandeiras oficiais, que encerra com a execução, pelas seis bandas filarmónicas
em simultâneo, dos hinos de Braga e de S. João depois de receberem no
respectivo estandarte a fita alusiva à presença na efeméride, uma solenidade
cumprida pelo edil local.
E depois é o retorno das
filarmónicas ao ponto de partida para realização dos respectivos despiques, por
artérias pejadas de gente que as aplaude entusiasticamente, seguidas de fervorosos
romeiros que manifestam o seu apoio acompanhando os compassos musicais com
palmas sentidas, ou assobiando alegremente as melodias, havendo mesmo quem se
tivesse emplastrado ao lado do flautim, de gravador em punho, gravando peça
atrás de peça, para espanto e admiração de quem, sob um sol que a essa hora era
já abrasador, assistia à passagem das bandas.
A essa hora, já a cidade
fervilha, uma urbe jovem, moderna e simpática, que se orgulha de participar no
frenesim da arte popular tradicional que se manifesta nas rusgas, festões,
danças, cantares, despiques filarmónicos, gastronomia e religiosidade popular,
apoiando-a e aplaudindo-a e assim marcando o buliçoso ritmo das suas ruas e
avenidas, assegurando um permanente entra-e-sai num comércio tradicional em que
pontuam as montras onde, mesmo antes da época, estão expostos artigos em saldo,
como forma de aliciar uma clientela que, em boa parte, apenas tem capacidade
para investir na compra dos agora actuais martelos de plástico e dos ainda
tradicionais alhos-porros. Pobretes mas alegretes, pois então!
Neste périplo, o cumprimento de
um ritual obrigatório: em formatura altiva e garboso porte, uma paragem em
frente ao respectivo átrio lateral, as bandas executam pela enésima repetição o
Hino de S. João, viradas para a Igreja da Misericórdia, dotada de uma imponente
fachada principal do estilo renascentista-florentino (1562) e na qual se
destaca o monumental retábulo da autoria de Marcelino de Araújo (1735-1740) e
do pátio interior onde repousam peças soltas de arquitectura medieval e
moderna, cravejadas de inscrições em português da época, ausente de acordo
ortográfico e, por isso mesmo, entendível a qualquer cidadão de cultura
mediana.
A manhã aproxima-se
apressadamente do seu final, numa altura em que as pernas já há algum tempo
exigem cumprimento do descanso que o toque do despertar madrugador impediu de
garantir. O extenso relvado rapidamente ficou forrado de bancos e colchas, onde
corpos cansados se deixaram cair. Mais ao lado, para os mais resistentes, é a
cerveja que começa a pagar a factura dos mais ansiosos por matarem sedes ainda
em trânsito desde a curta noite de sono da véspera.
É também o momento para aliviar
o pescoço do incómodo aperto do nó da gravata e, principalmente para uma boa
parte, dar as novidades a quem se quedou em casa: para os pais, rápidos
telefonemas, apenas um “olá”, “bom dia”, “está tudo bem”, “o sol aperta e o
vento fez gazeta”. Mais longas, muito mais longas, as conversas com os mais que
tudo, namoradas e namorados, estes, sim, para pôr a conversa verdadeiramente em
dia, recordando ao pormenor o último beijo e jurando, alguns de figas feitas,
que o próximo será ainda muito melhor. Também longas conversas interrompidas por
quem chama para almoçar, porque os filetes de pescada e a salada russa já estão
em cima da mesa.
E porque ainda há tempo, logo se
segue uma digressão até ao café mais próximo, em comitiva, pedindo-se gelados
para os mais novos e cafés e digestivos para os mais resistentes, que ainda
pedem um último copo de cerveja, mas fresca, muito fresca, porque a tardada vai
ser longa e a outra banda já está quase toda em palco, nos preparativos para o
concerto, onde conhecidos de outras festas e amigos de longa data se
confrontarão nesse despique, como se fosse o último dia da vida de cada um.
Visivelmente admirados, os
comerciantes de tenda montada, alguns chineses e muitos paquistaneses e
indianos, que parecem não entender o permanente corrupio filarmónico.
Com o fim de tarde à vista, é
enorme a expectativa para a repetição de todo o ritual, desde o sacramental
processo de matar aquela malvada sede, que se apodera de todos durante o
concerto da tarde, ao alívio do incómodo aperto do nó da gravata, até aos
telefonemas rápidos e mais demorados, consoante o destinatário.
Depois vem o jantar e logo de
seguida nova digressão ao café mais próximo. Outra vez gelados para os mais
novos e cafés e digestivos para os veteranos. E mesmo antes do início do concerto
da noite, ainda e outra vez o último copo de cerveja, obviamente fresca, muito
fresca mesmo, porque a noitada vai ser longa. Desta vez os da outra banda não
vão antecipar-se na subida ao palco para os preparativos do concerto.
Poucos minutos depois, em cima
do palco, cada uma das bandas dá o melhor de si, enquanto o aglomerado do
público vai engrossando cada vez mais até formar uma mole imensa de gente que
serpenteia, ondulante, de martelo de plástico e alho-porro, sempre prontos a
tocar tudo o que mexe.
– Nunca vi nada igual! – Disse uma senhora com ar de intelectual, com
óculos de massa preta e com uns lábios que formavam uma boca pequenina e que
estavam impecavelmente tingidos de rosa-choque, depois de aplaudir com evidente
satisfação a actuação do solista.
– Estes gajos são bons! Vou
falar com o meu primo para os levar lá à festa. – comentou o cavalheiro a tiracolo de quem a loiraça tinha os
arrebitados seios pendurados.
Ao mesmo tempo que mascava
ruidosamente uma chiclete, um tipo burgesso de mãos peludas e dedos grossos,
que vestia uma calça branca, ostentava um enorme coração atravessado por uma
seta com a inscrição “amo-te, Manuela”, gravada no braço direito. Nesse braço,
segurava a máquina fotográfica que apontou para o palco e que, num ápice,
disparou meia dúzia de flashes.
Ao lado deles, uma inusitada
situação de excesso de álcool numa noite de S. João em que reinam os martelos
de plástico e os alhos-porros, utilizados para aplicar fortes marteladas ou
lânguidos encostos nas cabeças de quem passa, conhecidos ou desconhecidos que,
de sorriso em riste, agradecem e retribuem o são-joanino gesto com redobrada
satisfação:
– É de Fermentões! – disse o que, de pernas bambas e olhos
semicerrados, segurava a garrafa de rum com a mão direita, ao mesmo tempo que
trincava o cigarro enrolado que apertava com os dedos da mão esquerda.
– Cala-te, tolo, que nem ler
sabes! Fermentões nem tem banda de música! – disse o outro que, aparentemente sóbrio, se limitava a segurar um copo
de cerveja com uma mão em cujo dedo mindinho se destacava um enorme anel de
latão amarelado.
Ninguém percebeu se o erro se
devia ou não à dificuldade de leitura das inscrições do estandarte da banda por
razões etílicas; mas à custa de alguma insistência do amigo, o céptico lá
acabou por se convencer de que a banda era de Fermentelos, “a velha”, precisou
o amigo, “porque há lá outra”.
Durante a monumental sessão de
fogo-de-artifício lançada do alto do Monte Picoto sobre o Terreiro de S. João e
Rio Este, fez-se um intervalo, reiniciando-se o concerto logo depois para
terminar às 3h:00 com a execução, agora pela última vez, dos hinos de Braga e
de S. João. Estava terminada a 19ª presença consecutiva da Marcial no S. João
de Braga.
Arrumada a trouxa e feita a
viagem de regresso, cumpriram-se, à chegada, praticamente 24h sobre a hora de
saída no dia anterior. A essa hora, as ruas de Fermentelos só não estavam
desertas porque já um dos muitos experientes pescadores da terra por lá andava
com a tralha às costas, pronta para ser armada nas águas da Pateira.
A troca de palavras foi de mera
circunstância:
– Estás para partir ou a chegar?
– Estou a chegar do S. João de
Braga!
– E correu tudo bem? Gostaste?
– Foi bonita a festa, pá!
– Então, vai lá descansar, que
eu estou agora a começar o dia. Até mais logo.
– Até logo.
Apesar de muito cansado, o jovem
músico só adormeceu depois de trazer à memória tudo quanto acontecera naqueles
festejos, cujas origens se perdem no tempo, uma das mais coloridas e genuínas
exteriorizações da grande e apaixonada alma minhota e onde a Marcial vem
deixando, ano após ano, verdadeiros testemunhos de fé, de amor, de espírito de
aventura e de sentimento de liberdade no desempenho dessa nobre missão que é o
exercício da filarmonia.
Um genuíno sentimento de dever
cumprido para quem está, ininterruptamente, desde 1868, ao serviço da música.