sábado, 27 de junho de 2015

PURA PAIXÃO POR UMA CAUSA MARCIAL

É preciso viver,
viver como homem comum
entre homens comuns.
Só um homem comum
pode fazer grandes coisas.
 
António Lobo Antunes
A saída era daí a uma hora, mas o despertador tocou às 4h:45.
 
Para trás, uma noite mal dormida de véspera de feriado. Pela frente, a garantia de um dia intenso em mais uma presença da mais antiga colectividade do concelho de Águeda numa das maiores festas populares do país, o S. João de Braga, uma oportunidade de convívio entre amigos e conhecidos, entre vizinhos e forasteiros, que cumpre uma matriz religioso-cultural evocando o seu santo precursor, e que se renova em cada ano que passa.
 
Logo pela manhã, cerca das 8h:00, seis bandas filarmónicas, uma dúzia de grupos de zés p’reiras, bombos, gaiteiros, gigantones e cabeçudos, e outra dúzia de grupos folclóricos, rusgas e tocatas, convergem de várias ruas e praças da milenar cidade dos arcebispos e dirigem-se para a avenida central. De seguida, partem em desfile até à Praça do Município para apresentação de cumprimentos às autoridades civis, militares e religiosas, entremeados por grupos de rapazes e raparigas com trajes de romaria empunhando arcos de S. João, num percurso que, não sendo longo, garante a execução de duas ou três marchas de rua.
 
Aí chegados, em frente aos Paços de Concelho, muita cor e muito brilho na cerimónia solene do hastear das bandeiras oficiais, que encerra com a execução, pelas seis bandas filarmónicas em simultâneo, dos hinos de Braga e de S. João depois de receberem no respectivo estandarte a fita alusiva à presença na efeméride, uma solenidade cumprida pelo edil local.
 
E depois é o retorno das filarmónicas ao ponto de partida para realização dos respectivos despiques, por artérias pejadas de gente que as aplaude entusiasticamente, seguidas de fervorosos romeiros que manifestam o seu apoio acompanhando os compassos musicais com palmas sentidas, ou assobiando alegremente as melodias, havendo mesmo quem se tivesse emplastrado ao lado do flautim, de gravador em punho, gravando peça atrás de peça, para espanto e admiração de quem, sob um sol que a essa hora era já abrasador, assistia à passagem das bandas.
 
A essa hora, já a cidade fervilha, uma urbe jovem, moderna e simpática, que se orgulha de participar no frenesim da arte popular tradicional que se manifesta nas rusgas, festões, danças, cantares, despiques filarmónicos, gastronomia e religiosidade popular, apoiando-a e aplaudindo-a e assim marcando o buliçoso ritmo das suas ruas e avenidas, assegurando um permanente entra-e-sai num comércio tradicional em que pontuam as montras onde, mesmo antes da época, estão expostos artigos em saldo, como forma de aliciar uma clientela que, em boa parte, apenas tem capacidade para investir na compra dos agora actuais martelos de plástico e dos ainda tradicionais alhos-porros. Pobretes mas alegretes, pois então!
 
Neste périplo, o cumprimento de um ritual obrigatório: em formatura altiva e garboso porte, uma paragem em frente ao respectivo átrio lateral, as bandas executam pela enésima repetição o Hino de S. João, viradas para a Igreja da Misericórdia, dotada de uma imponente fachada principal do estilo renascentista-florentino (1562) e na qual se destaca o monumental retábulo da autoria de Marcelino de Araújo (1735-1740) e do pátio interior onde repousam peças soltas de arquitectura medieval e moderna, cravejadas de inscrições em português da época, ausente de acordo ortográfico e, por isso mesmo, entendível a qualquer cidadão de cultura mediana.
 
A manhã aproxima-se apressadamente do seu final, numa altura em que as pernas já há algum tempo exigem cumprimento do descanso que o toque do despertar madrugador impediu de garantir. O extenso relvado rapidamente ficou forrado de bancos e colchas, onde corpos cansados se deixaram cair. Mais ao lado, para os mais resistentes, é a cerveja que começa a pagar a factura dos mais ansiosos por matarem sedes ainda em trânsito desde a curta noite de sono da véspera.
 
É também o momento para aliviar o pescoço do incómodo aperto do nó da gravata e, principalmente para uma boa parte, dar as novidades a quem se quedou em casa: para os pais, rápidos telefonemas, apenas um “olá”, “bom dia”, “está tudo bem”, “o sol aperta e o vento fez gazeta”. Mais longas, muito mais longas, as conversas com os mais que tudo, namoradas e namorados, estes, sim, para pôr a conversa verdadeiramente em dia, recordando ao pormenor o último beijo e jurando, alguns de figas feitas, que o próximo será ainda muito melhor. Também longas conversas interrompidas por quem chama para almoçar, porque os filetes de pescada e a salada russa já estão em cima da mesa.
 
E porque ainda há tempo, logo se segue uma digressão até ao café mais próximo, em comitiva, pedindo-se gelados para os mais novos e cafés e digestivos para os mais resistentes, que ainda pedem um último copo de cerveja, mas fresca, muito fresca, porque a tardada vai ser longa e a outra banda já está quase toda em palco, nos preparativos para o concerto, onde conhecidos de outras festas e amigos de longa data se confrontarão nesse despique, como se fosse o último dia da vida de cada um.
 
Visivelmente admirados, os comerciantes de tenda montada, alguns chineses e muitos paquistaneses e indianos, que parecem não entender o permanente corrupio filarmónico.
 
Com o fim de tarde à vista, é enorme a expectativa para a repetição de todo o ritual, desde o sacramental processo de matar aquela malvada sede, que se apodera de todos durante o concerto da tarde, ao alívio do incómodo aperto do nó da gravata, até aos telefonemas rápidos e mais demorados, consoante o destinatário.
 
Depois vem o jantar e logo de seguida nova digressão ao café mais próximo. Outra vez gelados para os mais novos e cafés e digestivos para os veteranos. E mesmo antes do início do concerto da noite, ainda e outra vez o último copo de cerveja, obviamente fresca, muito fresca mesmo, porque a noitada vai ser longa. Desta vez os da outra banda não vão antecipar-se na subida ao palco para os preparativos do concerto.
 
Poucos minutos depois, em cima do palco, cada uma das bandas dá o melhor de si, enquanto o aglomerado do público vai engrossando cada vez mais até formar uma mole imensa de gente que serpenteia, ondulante, de martelo de plástico e alho-porro, sempre prontos a tocar tudo o que mexe.
Nunca vi nada igual! Disse uma senhora com ar de intelectual, com óculos de massa preta e com uns lábios que formavam uma boca pequenina e que estavam impecavelmente tingidos de rosa-choque, depois de aplaudir com evidente satisfação a actuação do solista.
Estes gajos são bons! Vou falar com o meu primo para os levar lá à festa. comentou o cavalheiro a tiracolo de quem a loiraça tinha os arrebitados seios pendurados.
 
Ao mesmo tempo que mascava ruidosamente uma chiclete, um tipo burgesso de mãos peludas e dedos grossos, que vestia uma calça branca, ostentava um enorme coração atravessado por uma seta com a inscrição “amo-te, Manuela”, gravada no braço direito. Nesse braço, segurava a máquina fotográfica que apontou para o palco e que, num ápice, disparou meia dúzia de flashes.
 
Ao lado deles, uma inusitada situação de excesso de álcool numa noite de S. João em que reinam os martelos de plástico e os alhos-porros, utilizados para aplicar fortes marteladas ou lânguidos encostos nas cabeças de quem passa, conhecidos ou desconhecidos que, de sorriso em riste, agradecem e retribuem o são-joanino gesto com redobrada satisfação:
É de Fermentões! disse o que, de pernas bambas e olhos semicerrados, segurava a garrafa de rum com a mão direita, ao mesmo tempo que trincava o cigarro enrolado que apertava com os dedos da mão esquerda.
Cala-te, tolo, que nem ler sabes! Fermentões nem tem banda de música! – disse o outro que, aparentemente sóbrio, se limitava a segurar um copo de cerveja com uma mão em cujo dedo mindinho se destacava um enorme anel de latão amarelado.
 
Ninguém percebeu se o erro se devia ou não à dificuldade de leitura das inscrições do estandarte da banda por razões etílicas; mas à custa de alguma insistência do amigo, o céptico lá acabou por se convencer de que a banda era de Fermentelos, “a velha”, precisou o amigo, “porque há lá outra”.
 
Durante a monumental sessão de fogo-de-artifício lançada do alto do Monte Picoto sobre o Terreiro de S. João e Rio Este, fez-se um intervalo, reiniciando-se o concerto logo depois para terminar às 3h:00 com a execução, agora pela última vez, dos hinos de Braga e de S. João. Estava terminada a 19ª presença consecutiva da Marcial no S. João de Braga.
 
Arrumada a trouxa e feita a viagem de regresso, cumpriram-se, à chegada, praticamente 24h sobre a hora de saída no dia anterior. A essa hora, as ruas de Fermentelos só não estavam desertas porque já um dos muitos experientes pescadores da terra por lá andava com a tralha às costas, pronta para ser armada nas águas da Pateira.
 
A troca de palavras foi de mera circunstância:
Estás para partir ou a chegar?
Estou a chegar do S. João de Braga!
E correu tudo bem? Gostaste?
Foi bonita a festa, pá!
Então, vai lá descansar, que eu estou agora a começar o dia. Até mais logo.
Até logo.
 
Apesar de muito cansado, o jovem músico só adormeceu depois de trazer à memória tudo quanto acontecera naqueles festejos, cujas origens se perdem no tempo, uma das mais coloridas e genuínas exteriorizações da grande e apaixonada alma minhota e onde a Marcial vem deixando, ano após ano, verdadeiros testemunhos de fé, de amor, de espírito de aventura e de sentimento de liberdade no desempenho dessa nobre missão que é o exercício da filarmonia.
 
Um genuíno sentimento de dever cumprido para quem está, ininterruptamente, desde 1868, ao serviço da música.