Com punhos de renda, até a ofensa é linda!
Acúrcio Correia da Silva
Aparentemente imperturbáveis e
cada vez mais ávidos de protagonizarem autoritarismo e prepotência, exibiam um
estilo que se consolidava com sermões preparados para o dia-a-dia e que estava
bem patente na permanente tentativa de tutelar escribas desalinhados e
mentirosos, na omissão de informação sobre contendas judiciais desfavoráveis, e
no pagamento a peso de ouro, de profecias jurídicas que, convenientemente,
concluíam em sentido contrário àquele a que haviam chegado os seus
jurisconsultos ordinários.
Diziam que a sua acção realizava
grandes prodígios e milagres e, unidos pelos mesmos sentimentos, reuniam-se de
mãos dadas, num círculo cada vez mais restrito. Um deles perguntava:
– Podia o mundo viver sem nós?
Para que não houvesse risco de
uma resposta indesejável e inconveniente, era o próprio inquiridor que
sentenciava:
– Poder podia, mas não era a
mesma coisa!
Riam todos, muito profusamente,
comungando de uma apócrifa lengalenga bajuladora que monocordicamente
justificava a inevitabilidade do seu poder, no seio de um ideário ainda menos
ruidoso do que um cerimonial budista.
Apesar de tudo, a cidade ainda
tinha enfermos. E também existiam gentios, atormentados por espíritos que os
acólitos diziam impuros, pois colocavam questões que eles consideravam
impróprias e inadequadas, e perante as quais não eram capazes de disfarçar a
irritação e o nervosismo tão característicos de quem detesta ser contrariado.
As maiores crispações aconteciam
nos dois areópagos da urbe, um nobre e outro nem por isso, onde também tinham
assento muitos desses gentios que eles consideravam falaciosos, hipócritas,
blasfemos, incircuncisos e até intelectualmente desonestos, apenas e só porque
os acusavam de implantar no sinédrio um gigantesco e opaco processo de
anti-transparência.
Bem clamavam esses gentios que
não tinham qualquer intenção em ofender qualquer memória, ou de atirar a quem
quer que fosse vitupérios nascidos da arrogância de quem pudesse pensar que
lavava as mãos perante a verdade e que, de algum modo, se sentisse seguro e
garantido na sua tença.
Mas eles não acreditavam: era
uma reacção própria de quem se sentia desconfortável quando confrontado com
situações incómodas, e que nem sequer surpreendeu o mais novel dos opositores,
a quem bastou a presença numa única reunião para concluir que “não se pode
estar nas reuniões feito passarinho”!
Sedentos de cumprir tudo o que
pensavam que o seu poder era capaz de determinar, logo ouviram o seu líder
centurião levantar um grande clamor preconizando com matemática certeza:
– Vós que nos ameaçais, ficai a
saber que pagaremos quantos “aérios” nos forem pedidos por um parecer que nos
permita enclausurar-vos no inovado espaço e lapidar-vos sumariamente!
Os gentios, apoiados por alguns
homens principais da cidade e por todos os sumos-sacerdotes e anciãos, logo
ripostaram:
– Não vos agiteis em tumulto com
vãos projectos! Depois da festa viva, quereis fazer mais uma festa com a morte,
garantindo o nosso silêncio!
Incrédulos com o que ouviam, os
acólitos vociferaram em uníssono:
– E quando os vossos defuntos
corpos já só forem alimento para quadrúpedes da terra, feras, répteis e aves do
céu, obrigaremos as vossas famílias a apanhar as pedras com que sereis
apedrejados até à morte.
Percebendo que nada podiam
contra uma maioria despótica, que mentia e não praticava a verdade, os gentios
logo proclamaram:
– Vós, que dizeis ter construído
o céu, a terra, o mar e tudo o mais que se vislumbra e até o que a nossa vista
não consegue alcançar, ficai cientes de que desta ou de outra maneira, todos
morreremos. Mas, se for como apregoam, só é um bocadinho mais chato, porque nos
antecipam a hora! Mas desenganem-se se pensam que nos atormentais, porque em verdade
vos dizemos que, se nos julgais indignos da vida terrena, só o alcançareis se
não forem mansos como as vossas tias!
Possessos com o incontido júbilo
de homens de tão férrea cerviz, os acólitos perguntaram ao seu chefe máximo:
– Que dizeis aos vossos
acólitos? Que ordens tendes para nós?
E ele sentenciou:
– Executem-nos!
Como cordeiros levados ao
matadouro, foram assim os piedosos prosélitos condenados ao fatal destino,
porque bem sabiam que, às vezes, vale mais uma palavra com um tracinho que mil
palavras juntas.
A cidade foi perpassada por uma
grande tristeza. Por se julgarem únicos e insubstituíveis, nem ele nem os
acólitos admitiam que a História se construía ao longo do tempo. E, por isso,
nenhuma memória foi preservada, guardando o registo destes acontecimentos como
forma de propiciar aos vindouros elementos que não distorcessem a verdade e que
confirmassem os factos: começava assim a destruição da história de um povo!