sábado, 23 de maio de 2015

PARÁBOLA DO SILÊNCIO

Com punhos de renda, até a ofensa é linda!
 
Acúrcio Correia da Silva
Aparentemente imperturbáveis e cada vez mais ávidos de protagonizarem autoritarismo e prepotência, exibiam um estilo que se consolidava com sermões preparados para o dia-a-dia e que estava bem patente na permanente tentativa de tutelar escribas desalinhados e mentirosos, na omissão de informação sobre contendas judiciais desfavoráveis, e no pagamento a peso de ouro, de profecias jurídicas que, convenientemente, concluíam em sentido contrário àquele a que haviam chegado os seus jurisconsultos ordinários.

Diziam que a sua acção realizava grandes prodígios e milagres e, unidos pelos mesmos sentimentos, reuniam-se de mãos dadas, num círculo cada vez mais restrito. Um deles perguntava:
Podia o mundo viver sem nós?
Para que não houvesse risco de uma resposta indesejável e inconveniente, era o próprio inquiridor que sentenciava:
Poder podia, mas não era a mesma coisa!
Riam todos, muito profusamente, comungando de uma apócrifa lengalenga bajuladora que monocordicamente justificava a inevitabilidade do seu poder, no seio de um ideário ainda menos ruidoso do que um cerimonial budista.
Apesar de tudo, a cidade ainda tinha enfermos. E também existiam gentios, atormentados por espíritos que os acólitos diziam impuros, pois colocavam questões que eles consideravam impróprias e inadequadas, e perante as quais não eram capazes de disfarçar a irritação e o nervosismo tão característicos de quem detesta ser contrariado.
As maiores crispações aconteciam nos dois areópagos da urbe, um nobre e outro nem por isso, onde também tinham assento muitos desses gentios que eles consideravam falaciosos, hipócritas, blasfemos, incircuncisos e até intelectualmente desonestos, apenas e só porque os acusavam de implantar no sinédrio um gigantesco e opaco processo de anti-transparência.
 
Bem clamavam esses gentios que não tinham qualquer intenção em ofender qualquer memória, ou de atirar a quem quer que fosse vitupérios nascidos da arrogância de quem pudesse pensar que lavava as mãos perante a verdade e que, de algum modo, se sentisse seguro e garantido na sua tença.
Mas eles não acreditavam: era uma reacção própria de quem se sentia desconfortável quando confrontado com situações incómodas, e que nem sequer surpreendeu o mais novel dos opositores, a quem bastou a presença numa única reunião para concluir que “não se pode estar nas reuniões feito passarinho”!
Sedentos de cumprir tudo o que pensavam que o seu poder era capaz de determinar, logo ouviram o seu líder centurião levantar um grande clamor preconizando com matemática certeza:
Vós que nos ameaçais, ficai a saber que pagaremos quantos “aérios” nos forem pedidos por um parecer que nos permita enclausurar-vos no inovado espaço e lapidar-vos sumariamente!
Os gentios, apoiados por alguns homens principais da cidade e por todos os sumos-sacerdotes e anciãos, logo ripostaram:
Não vos agiteis em tumulto com vãos projectos! Depois da festa viva, quereis fazer mais uma festa com a morte, garantindo o nosso silêncio!
Incrédulos com o que ouviam, os acólitos vociferaram em uníssono:
E quando os vossos defuntos corpos já só forem alimento para quadrúpedes da terra, feras, répteis e aves do céu, obrigaremos as vossas famílias a apanhar as pedras com que sereis apedrejados até à morte.
Percebendo que nada podiam contra uma maioria despótica, que mentia e não praticava a verdade, os gentios logo proclamaram:
Vós, que dizeis ter construído o céu, a terra, o mar e tudo o mais que se vislumbra e até o que a nossa vista não consegue alcançar, ficai cientes de que desta ou de outra maneira, todos morreremos. Mas, se for como apregoam, só é um bocadinho mais chato, porque nos antecipam a hora! Mas desenganem-se se pensam que nos atormentais, porque em verdade vos dizemos que, se nos julgais indignos da vida terrena, só o alcançareis se não forem mansos como as vossas tias!
Possessos com o incontido júbilo de homens de tão férrea cerviz, os acólitos perguntaram ao seu chefe máximo:
Que dizeis aos vossos acólitos? Que ordens tendes para nós?
E ele sentenciou:
Executem-nos!
Como cordeiros levados ao matadouro, foram assim os piedosos prosélitos condenados ao fatal destino, porque bem sabiam que, às vezes, vale mais uma palavra com um tracinho que mil palavras juntas.
A cidade foi perpassada por uma grande tristeza. Por se julgarem únicos e insubstituíveis, nem ele nem os acólitos admitiam que a História se construía ao longo do tempo. E, por isso, nenhuma memória foi preservada, guardando o registo destes acontecimentos como forma de propiciar aos vindouros elementos que não distorcessem a verdade e que confirmassem os factos: começava assim a destruição da história de um povo!