Não devo ter sido o único a ouvir que a grande diferença na relação entre o poder político e o económico em Portugal, da ditadura para a democracia, seria que antigamente era o ditador a definir quem eram os ricos e que agora eram os ricos a decidir quem tinha o poder político.
A afirmação é manifestamente exagerada, provavelmente incorreta em termos históricos e injusta para a nossa democracia. É, sobretudo, muito influenciada pelo ambiente atual em que existe a perceção de que o poder económico se globalizou e se sobrepôs de maneira clara ao poder político.
O que pouco mudou da ditadura para a democracia é a forma como uma parte importante dos poucos grupos económicos dependem do Estado e de como o Estado depende deles ou, pelo menos, os deixa influenciar o processo político. Num país pobre, com um mercado pequeno, com empresas pouco capitalizadas, com pouca gente qualificada, que acaba quase inevitavelmente por ter de circular entre o Estado e as grandes empresas, talvez essa relação umbilical seja inevitável. O bem comum tem sido, digamos assim, prejudicado face aos grandes grupos. E não só na perspetiva de mais benefícios diretos para a comunidade, mas também no bloqueio ao crescimento de outros grupos, outras empresas. Os grandes grupos, com a bênção direta ou indireta do Estado, abusam, por assim dizer, da posição dominante e não deixam crescer nada ao seu redor.
Há coisas aparentemente pequenas que dizem muito. Sabemos que um líder de um partido está com grandes possibilidades de chegar a primeiro-ministro quando se sabe que vai almoçar com o presidente do banco X ou Y e é certo e sabido que o primeiro telefonema que um recém-primeiro-ministro recebe é de um presidente de um grande grupo económico.
Vem esta conversa toda a propósito, e a algum despropósito, da novela Espírito Santo, que vai tendo a cada dia que passa um episódio mais degradante.
Se há grupo económico que representa de forma exemplar a profunda interligação entre o poder político e o económico na sociedade portuguesa é o Espírito Santo. E, claro está, não é de agora. Tornou-se comum ouvir que em Portugal manda o Governo e no Governo mandam os Espírito Santo. Um grupo com uma rede sem fim de empresas, com ligações a tudo o que é negócio, a tudo o que é interesse declarado ou escondido, a tudo o que envolva o Estado ou em que a decisão estatal seja vital. Também não havia trapalhada que não envolvesse uma empresa Espírito Santo ou aparentada: sobreiros e submarinos são apenas dois exemplos. Habituámo-nos a conviver com as notícias de umas ligações esquisitas, de uns negócios mal explicados, de umas empresas com problemas com a justiça, de uns primos que se zangavam, de uns tios que faziam as pazes, de uns amigos da família que ganhavam sempre concursos públicos, de um presidente que se esquecia de declarar uns milhõezitos. Umas malandrices portuguesas típicas, uma imagem sofisticada dos nossos endémicos defeitos. Uma quase família real à portuguesa.
Ficamos definitivamente a saber que a parte do grupo não financeiro está a implodir e que a parte financeira - sólida e com um controlo rígido do regulador - mudará de proprietários e de gestão. É uma espécie de regime que acaba. Um regime, como ficou evidente, que vivia claramente muito acima das suas possibilidades. Um grupo que, mesmo que vendesse tudo o que tem, estaria muito longe de pagar todas as suas dívidas - quem quer apostar que para eles existirá um perdão de muitas dívidas? Pelo meio fica a pouca vergonha, o desprezo pela comunidade e alguma falta de consciência ou perceção de impunidade. Um presidente do grupo que culpa o contabilista, que não percebeu - com décadas de atividade empresarial - que alguém se tinha esquecido de contabilizar 1,200 milhões de euros de dívidas, que não realizou que as suas empresas estavam completamente falidas e que liderava um grupo não financeiro que o Wall Street Journal afirma funcionar num esquema Ponzi, como quem diz do género Dona Branca.
Talvez esta história pouco edificante do grupo Espírito Santo pudesse ser vista como um caso isolado. Não é, basta lembrar, por exemplo, os problemas com o BCP e pensando apenas nos grandes. Ficamos com a sensação de profunda fragilidade das nossas instituições - esqueçamos, por agora, as possíveis ilegalidades e demais prejuízos. Sim, não são só as democráticas, como os tribunais, o Parlamento e tantas outras, o mal é mais comum do que se pensa e está largamente disseminado na comunidade. Nada, como nunca, nos dá segurança. Nada, como nunca, parece sólido. Nem a aparente renovação de um grande grupo mal gerido, com demasiado poder, demasiados vícios e demasiada falta de vergonha serve para sentirmos que algo está a mudar para melhor.
Vivemos tempos terríveis.
Pedro Marques Lopes, aqui