sábado, 12 de abril de 2014

DEMOCRACIA E ELOQUOÊNCIA

A paz e a justiça são bens ancestrais. "Olho por olho, dente por dente", como explica argutamente Niklas Luhmann, é um preceito onde já assoma uma ideia de "justa medida", de estrita proporcionalidade: a preocupação de adequar a extensão da vingança à dimensão da ofensa

A pena de Talião constitui uma alternativa "razoável" quando confrontada com a prática devastadora do extermínio de todos os membros do clã do ofensor. Enquanto as origens da paz e da justiça se perdem na lonjura do tempo, pelo contrário, a liberdade individual e a igualdade são ideias muito recentes. 

A modernidade iria encarregar-se de apurar os seus conteúdos e de os associar intimamente: a liberdade individual não é aquela fabulosa desordem que reinava entre os deuses do Olimpo que tanto fascinou Friedrich Nietzsche, na "Gaia Ciência". Uma "desordem", é certo, que ainda cabe na esfera de autonomia que a liberdade se propõe preservar. A liberdade dos modernos é causa e efeito da destruição libertadora da rígida estratificação hierárquica, social e política do "antigo regime" realizada, precisamente, em nome da igualdade e historicamente operada pela Revolução Francesa. A liberdade individual é a liberdade entre iguais - uma liberdade igualmente distribuída.

É da crise destes valores, mantidos e preservados pela paz e a justiça, que tratava aqui na semana passada e aqui procurei demonstrar. Nesse vazio da política contemporânea está hoje inscrita - de Reagan a Blair, com o incessante cortejo de sucessores internacionais e domésticos - a habilidade retórica! No último capítulo do magnífico tratado de 1938 que intitulou "O Poder", Bertrand Russell afirmava: "Adquirir imunidade à eloquência é de máxima importância para os cidadãos de uma democracia". 

Não imaginaria o autor a tremenda atualidade de tão lúcida advertência. Como destacava João Carlos Espada na edição da tradução portuguesa da Editorial Fragmentos de 1990, Bertrand Russell foi preso em 1918 "devido às suas ideias pacifistas" - ele, um dos mais consequentes opositores à ascensão dos fascismos que desencadearam a Segunda Guerra Mundial! - e voltaria a ser preso em 1961, já depois de receber o prémio Nobel, por se ter rebelado contra a política de rearmamento nuclear do Governo britânico. 

Nas últimas páginas de "O Poder", Bertrand Russell explica-se: "Se eu controlasse a educação, exporia as crianças aos advogados mais veementes e eloquentes" das partes em litígio (...) que falariam às escolas a partir da BBC. Depois, o professor devia convidar as crianças a sintetizar os argumentos utilizados e insinuaria delicadamente a opinião de que a eloquência é inversamente proporcional à razão consistente". Já "os antigos" apontavam a "demagogia" como a forma específica de degradação da "democracia". A "eloquência" substituiu-se entretanto às causas coletivas e à ideia de transformação do Mundo. Diz-se uma coisa agora para tentar depois, continuar impunemente a fazer o contrário do que foi dito e redito. Mais grave que o desgaste das palavras é a banalização e a desqualificação dos valores que este procedimento implica.

"Toda a submissão se funda no medo", dizia Bertrand Russell. E é do medo que cuida todo o argumentário da "austeridade": a expiação de culpas, o juízo imperscrutável dos mercados, a invisibilidade dos credores, a negação de alternativas, a resignação à fatalidade do infortúnio, a incerteza e o desamparo promovidos pela permanente manipulação de expectativas. Mark Blyth, da Universidade de Harvard, diz que a austeridade foi uma fantástica política para os bancos, transformando em poucos meses uma crise da banca privada numa crise do estado soberano (Blyth, Mark - Austerity: The History of a Dangerous Idea, Oxford University Press, 2013, EUA). E responsabiliza as elites políticas e financeiras - as europeias, em particular - por esta desavergonhada transferência de encargos... Virtuosa eloquência!

Retirada daqui