quinta-feira, 20 de março de 2014

QUEM CO-ADOPTA PORTUGAL?

Há dias memoráveis e há outros que parecem a mais longa noite, aquela em que a água não espelha luas em reflexo, onde a sombra não tem sombra de elegância alguma e sombrio é o dia que amanhece

Engataram-se uns nos outros, estes dias. Na economia e na justiça, na política e nos costumes, na liberdade ou pela falta dela. Há dias que não tenho uma boa notícia de Portugal e isso é constrangedor.

Se este Estado somos nós, peço desde já a minha exoneração. Esta semana foi insustentável, todos os dias. Detestaria ser submetido ao teste de pressão "Masterchef" de Pedro Passos Coelho e dos seus economistas alinhavados na mentira de uma só receita e de uma só solução final: a ideia de que quem defende a reestruturação da dívida também advoga inevitavelmente o perdão, ainda que parcial, da mesma. Eu sei que José Sócrates, provocador nato, confundia os dois conceitos em pleno 2011, tempo em que os amanhãs que o PEC 4 cantava ainda não tinham aportado. Agora até ele já se reestruturou. Voltar ao país, após curto exílio, é sempre um passaporte para a clarificação.

Cavaco Silva, da forma plácida e temerosa que o caracteriza, aguentou o teste de pressão durante singelas 24-horas-24 até aceitar o pedido de exoneração dos seus conselheiros "On The Road" Vítor Martins e Sevinate Pinto, apanhados a grande velocidade por mero delito de opinião. Quem tinha dúvidas perdeu-as: a mais alta figura da nação prefere o Estripador ao outro Jack, o Kerouack. Só é estranho que não tenha descido às entranhas do seu Jack de estimação quando, no passado recente, não exonerou os seus assessores Moreira da Silva e Suzana Toscano no momento em que defenderam e adoptaram publicamente teses anti-socráticas ou quando Carlos Blanco de Morais (seu consultor para assuntos constitucionais) elaborou parte da moção estratégica de Passos Coelho, então candidato a líder do PSD. Aí, o presidente teve outra visão sobre esta coisa simples a que se chama liberdade. Cavaco Silva já nos tinha avisado de que estaríamos sob vigilância até 2035. Manifesto: subitamente tão vigilante e penalizador com os seus, longe estava eu de pensar que o principal credor era ele.

Temos casos: os crimes económicos vs. austeridade, entre outros. As prescrições que permitiram o aforro de 1,5 milhões a Jardim Gonçalves (nos processos do Banco de Portugal e da CMVM) e a iminente prescrição parcial das contra-ordenações de 4 milhões a João Rendeiro e das coimas de 9,9 milhões a José de Oliveira e Costa... O assalto dos bancos às comissões bancárias dos depósitos mais modestos e a ideia recorrente de taxar os levantamentos/pagamentos de multibanco como compensação ao sector bancário e em nome do combate à fraude fiscal... A insistência do Governo no desrespeito pelo veto presidencial à subida das contribuições para os subsistemas de saúde da ADSE, ADM e SAD. 

O "spill over" dos fundos europeus que o centralismo teima em não combater por interesses instalados, agravando as assimetrias regionais num país que continua a passar, aos solavancos, a fronteira para o subdesenvolvimento e para a pobreza. O ataque pessoal e moralmente intransponível aos subscritores do denominado Manifesto dos 70 e ao seu passado e idade, como se alguns dos que nos governam fossem bons e novos rapazes, "boys" na idade e não na carreira política. O 2.º lugar no ranking dos países com mais emigrantes na União Europeia (a morder os calcanhares a Malta e à frente do Chipre, uma delícia...). Os lanches em São Bento em que nenhum dos dois quer dançar o tango. Já chegava para uma semana de vergonha, não?

Mas não. Ainda havia mais, agora na óptica dos costumes e da (i)moralidade. Àqueles que chumbaram a co-adopção, àqueles que tratam as crianças como joguetes, àqueles que não abrem as portas do armário para deixar os seus fantasmas à solta, àqueles que mudam o sentido de voto com lágrimas de crocodilo por indicação coerciva dos partidos e de certas bases com costas largas, àqueles que - também aqui - nos colocam na cauda da Europa, uma só palavra com sufixo: envergonhem-se! Estão a dar o país para co-adopção e, não tarda, não haverá quem o queira. Só haverá gente, à deriva e à procura da sua filiação emotiva a Portugal.

Retirada daqui