terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ERA UMA VEZ...

O PAZ DE ALMA
Aquele senhor ali, de calva rosada e redonda, olhos pestanejantes de menino velho, bochechinhas caídas, da cor da calva, tem mesmo ar de boa pessoa. Uma jóia. Uma raridade. Um paz de alma

Todas as manhãs se senta à mesma mesa do nosso café do bairro e pede numa voz mansa, de palavras pronunciadas sílaba a sílaba: 
- Se faz favor trazia-me uma meia de leite, mas não muito quente, acompanhada por um queque, de preferência ainda quentinho? 


E ri-se, suavemente, do seu capricho guloso. 

Pois no outro dia, entrou um desconhecido de rompante, lá no café, que se dirigiu sem hesitação ao senhor, a meio da sua chávena meia de leite. 
- O senhor é que é o Abílio Gomes, não é? - perguntou ele, de dedo apontado, com muito maus modos. 

E sem esperar pela resposta, nem sequer dar tempo ao senhor para poisar a chávena, pregou-lhe uma bofetada de todo o tamanho e saiu disparado, tal como entrara. 

Esparramou-se o conteúdo da chávena, que se partiu mais o pires, no lajedo do café. 

Eu, que estava perto, ainda apanhei uns salpicos. 

Entretanto, o senhor, de bochechas muito mais rosadas do que o costume, mamava, imperturbável, o resto do queque, ensopado de café. 
Indignei-me: 
- Então o senhor apanha uma bofetada destas e fica-se? 

Acabando de engolir o queque, o senhor só respondeu: 
- O caso não era comigo. Deve ter sido engano. Eu nem me chamo Abílio?


António Torrado | Cristina Malaquias, aqui