Talvez o efeito maior do momento neoliberal da longa globalização tenha sido
o anátema quase total lançado sobre o valor político da autodeterminação.
E
talvez o efeito maior da atual crise desse momento seja, em quase todas as
regiões do mundo, o retorno a esse valor.
Os dois lados da ambivalência política da globalização - feita quer de
integração dos mercados financeiros quer de mundialização das lutas pelos
direitos humanos - juntaram-se, a partir da década de oitenta, na produção de um
discurso crítico da soberania dos Estados, remetida para a categoria de resíduo
político.
O resultado foi a súbita desvalorização do conceito de autodeterminação no
debate político internacional. O que fora a grande referência dos movimentos de
libertação do pós-guerra, animando uma geração de lutas que mudou por inteiro o
mapa do mundo, saiu quase totalmente de cena, castigada ora por supostamente
camuflar situações de estatalidade inviável, ora por servir de bandeira a
mobilizações desalinhadas com o primado do mercado mundial.
Tomando esse
alinhamento como critério, louvou-se efemeramente a retórica de autodeterminação
presente nas revoltas ocorridas no Leste europeu ou no mundo árabe, ao mesmo
tempo que se eliminava a palavra - e o seu conteúdo político transformador - do
vocabulário aplicado à América Latina ou a África, por exemplo.
Para preencher esse vazio alguns crentes na regulação do momento neoliberal
da globalização sugerem a hipótese de um constitucionalismo global. E,
generosos, põem no centro desse constitucionalismo global a uniformização de um
catálogo de direitos fundamentais e dos cânones do Estado de direito. Sucede,
porém, que a vida não lhes dá razão.
O constitucionalismo global efetivamente
existente, não o dos livros e das conferências mas o da política concreta que
está aí, é afinal o da constitucionalização do próprio neoliberalismo. Veja-se,
no espaço da União Europeia, o valor constitucional prático que se pretende
conferir à "regra de ouro" do equilíbrio orçamental para a atirar quer contra os
governos que decidam seguir uma orientação de intervenção contracíclica, por
exemplo, quer contra os próprios tribunais constitucionais nacionais.
Veja-se,
em escala mais ampla, o que resultará da aprovação da Parceria Transatlântica de
Comércio e Investimento (vulgo, tratado de comércio livre entre a União Europeia
e os Estados Unidos), com os investidores (como a Monsanto, a Philip Morris ou a
Microsoft) a poderem processar os governos nacionais diante de um tribunal ad
hoc se estes adotarem legislações nacionais que aqueles considerem prejudiciais
para a sua liberdade de negócios. Este constitucionalismo global efetivo que
rouba toda a autonomia - incluindo a de determinar o conteúdo das leis - aos
Estados e aos povos que eles é suposto representarem é por isso mesmo um ataque
letal à democracia.
A Europa do Sul está a trazer de volta a autodeterminação para o centro da
política. Porque é aqui e agora que os efeitos do discurso encantatório da
integração política e económica se estão a exibir em toda a sua perversidade.
Aqui, integração e perda da autodeterminação estão a ser sinónimos e os dois
estão a significar austeridade sem fim e desdém da democracia.
Unir os povos do
Sul da Europa para resgatar a nossa autodeterminação contra o constitu-
cionalismo global ordoliberal que nos amarfanha é hoje um imperativo da
democracia. Essa é a questão essencial das próximas eleições europeias.
José Manuel Pureza, aqui