segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O LEGADO QUE MANDELA NÃO DEIXA

O dia estava frio, ventoso e ameaçava chover durante a curta viagem de barco entre a cosmopolita doca da Cidade do Cabo e a austera ilha de Robben

Quem zarpa rumo à prisão rodeada de mar com uma vista ironicamente bela para a lindíssima "table mountain" tem um só objetivo: ver e sentir por uns efémeros - mas intensos - minutos a cela de Nelson Mandela. Porque Robben Island não é uma prisão qualquer: foi lá que o homem cuja morte emocionou o Mundo - e do qual é, provavelmente, o seu último símbolo - sobreviveu quase duas décadas da sua longa vida. 

Foi também em Robben que Mandela se tornou no que o Mundo nunca esquecerá. Foi lá que consolidou a longa caminhada para a liberdade. Dele e, sobretudo, de todos os negros sul-africanos. E onde se fez também um homem mais culto, tolerante, capaz de moldar um país aberrante no que aos direitos humanos diz respeito, poupando-o, depois da sua liberdade e da conquista da presidência, a uma mais do que provável guerra civil na ressaca do desmoronamento da segregação racial.

A visita à cadeia de Robben foi guiada por Jama Mbatyoti, também ele um ex-preso político. Mbatyoti é um homem calmo. Talvez a cadeia transforme assim os homens. O antigo encarcerado abre a porta de acesso à secção B da prisão e explica que estamos próximos do cubículo do prisioneiro 46664. Quase ninguém fica indiferente ao passar a porta metálica pintada com um tinta beje ocre a descascar. 

O corredor era frio. Mas, afinal, aquele era o momento em que estaríamos mais perto de Mandela. Ver o espaço exíguo, a cama no chão, os cobertores cinzentos, o pequeno banco de madeira ou o balde usados por Madiba foi um momento emocionante.

Muito tempo passou desde que Mandela abandonou aquelas paredes gradeadas. Democratizou a sua África do Sul, venceu as eleições livres e justas, ganhou com De Klerk o Nobel da paz. Depois, optou por sair de cena, tendo morrido de forma tranquila na semana passada.

Nelson Mandela será enterrado hoje em Qunu, onde nasceu. O Mundo rendeu homenagens ímpares a Madiba. Qual será, no entanto, o legado de Mandela na África do Sul? O que deixou da passagem por este mundo além do incontornável descongelamento do aberrante apartheid e posterior estabilidade política no país dos "afrikaner"? Aparentemente muito pouco. A tolerância pela qual viveu e morreu parecer ter agora poucos seguidores no seu Congresso Nacional Africano. 

O partido consolida-se no poder, eleição após eleição, apesar das sombras de corrupção que o afetam. A par disso, a própria família de Mandela parece mais interessanda em explorar comercialmente a sua "marca" do que honrar o seu legado moral e político. Mandla, o neto mais velho, chegou ao ridículo de transferir de Qunu para outra aldeia os restos mortais de três filhos de Mandela esperando que, dessa forma, Madiba decidisse em vida ser enterrado lá. 

Após uma não muito digna disputa judicial, os corpos foram devolvidos a Qunu onde Mandela será enterrado hoje. Um funeral imponente que não vai contar com a presença do seu amigo e companheiro de tantas lutas, Desmond Tutu. Não será por acaso. O carismático bispo sul-africano é um crítico da atual liderança de Jacob Zuma. E esta segregação, ainda que política, não é por certo o sinal que Mandela gostaria de ver na hora de partir.

Retirada daqui