terça-feira, 24 de dezembro de 2013

CONTO DE NATAL

Nesse instante cansou-se das asas, o anjo

Pousou-as entre a chaminé e a segunda telha partida a contar do algeroz e deslizou parede abaixo. O gelo fez-lhe um rasgão nas calças mas ele não deu por isso, estonteado na liberdade de quem deixa um fardo na paragem do autocarro e segue a pé a cantarolar inocências. 

Atravessou a cidade, vagueou pelas ruas, entrou numa ou duas lojas, mas como não lhe faltava nada, nada desejou. Depois sentou-se num banco da avenida e certificou-se de que o céu era azul escuro e que as luzes brilhavam nas janelas.
- Andas aos caídos?


O anjo virou-se, sentado ao seu lado estava um rapaz muito pequeno com o nariz a pingar e uns ténis enormes a balouçar nos pés. Para dizer a verdade nem chegava a ser um rapaz, era mais um menino, enfezado e magrinho.
- Eu? Tu é que caíste aqui - disse o anjo - e como o ranho sempre o enojara, acrescentou – toma lá um lenço, assoa-te por favor.
- És um enjoado – respondeu o rapaz e pegando no lenço que o anjo lhe estendia, assoou-se ruidosamente.
- Sou um anjo – disse o anjo.

O rapaz olhou-o de soslaio, as calças rotas, dois buracos na camisola no lugar das asas e começou a rir, primeiro baixinho, a seguir elevou o tom, gargalhou, dobrou o riso.
- Se a minha mãe me visse agora, não ia acreditar- disse o rapaz.
- A minha também não – riu-se o anjo.

Um cheiro a bolo quente deu a volta às ruas e os estômagos do rapaz e do anjo roncaram de fome.

Visível no firmamento era a estrela cadente e o rapaz piscou os olhos de sono. O anjo descalçou-lhe os ténis, pegou-lhe ao colo, fez o caminho em sentido inverso, subiu aos telhados e entre a chaminé e a segunda telha partida encontrou as suas asas e nelas deitou o menino enfezado e magrinho.

Pela madrugada vieram os homens, as mulheres e as crianças daquela cidade e ofereceram uma agulha e uma linha ao anjo e uns sapatos novos ao rapaz, que era mais um menino.

Retirada daqui