Há um país no meio do Pacífico que se chama Kiribati. É um arquipélago
formado por 33 ilhas, na verdade 32, porque uma delas, Banaba, é apenas uma
pequena elevação de coral no meio daquele oceano magnífico.
Talvez já tenha
ouvido falar deste sítio: não há assim tantos que vivam com a certeza de que vão
afundar nos próximos anos, submergidos pela subida dos oceanos provocada pelo
aquecimento global. Os 103 mil habitantes de Kiribati não vão ao engano.
Eles
sabem o que os espera: o território tem uma elevação inferior a dez metros,
prevê-se que nos próximos 20 anos os lençóis de água que ainda aguentam a
vegetação e que asseguram a existência de vida - terra arável, árvores, essas
coisas mundanas - fiquem de tal forma contaminados pela infiltração de sal (mas
não só) que se tornará impossível viver em qualquer das ilhas.
O que é mais chocante neste genocídio pós-moderno não é apenas o desinteresse
absoluto do mundo inteiro por esta tragédia gota a gota, uma desgraça sem
limites que só acontece porque o ambiente (a natureza) é uma coisa que na
verdade não interessa um pinguim, embora fique bem na fotografia quando
domesticado nos relatórios de sustentabilidade das grandes empresas - quem já
teve um destes calhamaços nas mãos, altares do design Wallpaper, sabe bem o que
significa desperdício de papel, energia e dinheiro. Na verdade, estes
relatórios, estes troféus ecológicos que fazem cócegas à nossa consciência
coletiva, são eles próprios a metáfora do esbanjamento. São o contrário do que
apregoam ser: 100% inúteis.
Dizia eu: o que é chocante nisto tudo é apenas o detalhe macabro de os
kiribati não terem qualquer responsabilidade no aquecimento global que lhes
afogará o país; mas também o facto de eles próprios, os habitantes das ilhas e
não outros, estarem pela sua mão a acelerar o processo de contaminação das águas
e das terras das quais dependem para sobreviver. Não só defecam nas águas da
lagoa à volta das ilhas - é difícil mudar de hábitos -, como enterram os mortos
ao pé dos poucos lençóis de água que ainda se aguentam. É difícil mudar de
tradições, nós sabemos. Tudo isto acontece apesar do debate permanente no país
(suspeito que deve haver um Prós & Contras em Kiribati) para que as pessoas
compreendam e se mobilizem.
Como é possível um povo inteiro apressar o seu fim? Como é possível as
pessoas não se porem de acordo, um acordo mínimo, quando o interesse coletivo é
tão evidente e a destruição tão radical? O presidente de Kiribati disse esta
semana que a única alternativa seria suspender a democracia durante seis meses
para salvar o que ainda é possível salvar. Disse mesmo, é conferir na Bloomberg,
não sei se andou a ler os discursos de Ferreira Leite.
Acontece que a natureza
humana é isto. A porcaria tem esta tendência viscosa, visceral, para vir ao de
cima nos momentos mais difíceis. A crise infiltra tudo, justifica tudo, da
agressividade sem limites ao egoísmo mais primitivo à divisão política mais
oportunista. Regredimos. Como diz o filósofo Mike Tyson, todos temos um plano
até levarmos um murro na boca.
André Macedo, aqui