1- Há um clima de embuste, de perda de vergonha, de
mentiras, de desprezo absoluto pelos cidadãos que começa a ser asfixiante.
Ainda
não se tinha acabado de contar os votos das eleições autárquicas e já o
Presidente da República, o vice-primeiro-ministro mais a sua assistente Maria
Luís e os senhores da troika vinham colaborar na absurda farsa que o País
está a viver.
Que o Presidente da República diga tudo e o seu contrário não constitui
propriamente uma novidade. Apelidar de masoquistas todos os economistas da
esquerda à direita é lá com ele, dizer que os políticos e analistas também o são
vá que não vá. Já afirmar com um ar definitivo que o que disse há nove meses é
próprio de um masoquista pode perturbar, convenhamos, a confiança que alguns
portugueses ainda têm no Presidente da República.
Que Paulo Portas ande a brincar com o primeiro-ministro dizendo desde
Fevereiro que vai apresentar um projecto de reforma do Estado e que Passos
Coelho lhe chame a atenção em público por ainda não o ter feito são apenas mais
umas das garotices com que os dois nos presenteiam habitualmente.
Que o
vice-primeiro-ministro venha dizer que faltam três avaliações para retomarmos a
nossa soberania financeira, quando sabe perfeitamente que nessa altura, com a
economia destruída, vamos estar mais dependentes do que nunca, enfim, é só mais
uma mentira. Que diga, sem se rir, que não vai existir outro pacote de
austeridade, quando ele sabe melhor do que ninguém que um gigantesco pacote que
vai ser concretizado no próximo orçamento já foi apresentado dia 3 de Maio, é um
teste à nossa paciência.
Que ele, a troika, Passos Coelho, Banco de
Portugal e qualquer português que saiba somar dois mais dois tenham a certeza de
que o limite de quatro por cento de défice para 2014 não vai ser atingido e que
vai ser negociado lá para Março e renegociado em Maio e voltar a ser negociado
em Setembro, mas prefiram fingir que estão a falar a sério, já estamos
habituados. Afinal, é isso que tem acontecido nos últimos anos.
Agora que nos venham dizer que o plano está a correr bem, já é de mais. A não
ser que o jogo seja uma espécie de "perdes ganhas". Estão as contas públicas em
ordem? Está o endividamento mais baixo? O desemprego desceu? O salvífico
regresso aos mercados de dia 23 de Setembro terá acontecido sem que tenhamos
dado conta? A reforma do Estado está em marcha?
Mas que raio mede a troika? A capacidade de Portas conseguir falar sem
dizer nada durante duas horas ? A falta de vergonha que permite a um país
civilizado continuar a ter Rui Machete no Governo apesar de todas as mentiras,
faltas de memória e sugestões feitas no estrangeiro de que em Portugal não há
uma efectiva separação de poderes?
A troika não quer assumir que o seu plano foi um falhanço completo e
prefere continuar a destruir um país a ter de arrepiar caminho. Talvez seja mau
para o currículo dos arquitectos do plano admitir que não resultou. Talvez
dizendo muitas vezes que o plano está a resultar os mercados acreditem e
resolvam baixar as taxas. Talvez não queiram embaraçar o primeiro-ministro que
achava o plano tão bom, tão bom que o levaria sempre a cabo e até iria para além
dele.
A troika pode querer tudo. Não pode é criticar o nosso Tribunal
Constitucional, não pode ameaçar uma instituição fundamental da nossa
democracia. E foi o que fez numa carta que em qualquer país que se desse ao
respeito produziria uma unânime condenação, um gigantesco coro de indignação. O
Governo, o Presidente da Republica, podem concordar com tudo. Ajudar a atirar
toda a gente para o desemprego, fazer falir tudo o que é empresa, enviar os
portugueses todos para o estrangeiro, atrasar o País quarenta anos. O que os
nossos representantes não podem consentir, com o que não podem pactuar é com a
interferência nos nossos mais sagrados direitos de soberania, com a nossa
independência.
O que está em causa é muito mais do que uma opção política ou
económica: é a dignidade de uma comunidade inteira, as suas instituições mais
relevantes.
O que a troika fez foi humilhar um povo e um dos pilares da
democracia. Um Governo e um Presidente que consintam humilhações destas não
merecem representar os portugueses. Um povo que não se sinta insultado com esta
vergonha só pode ser portador do terrível vírus da apatia. Ou, se calhar, Cavaco
Silva tem razão: somos um bando de masoquistas.
2- Ontem, pela primeira vez em muito tempo, o dia da
implantação da República não foi feriado. Uma comunidade que não celebra a sua
memória colectiva, que não comemora os seus valores fundamentais, definha. É uma
comunidade condenada.
Viva a República.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo
Ortográfico
Pedro Marques Lopes, aqui