quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O QUE INTERESSA É QUE HAJA FESTAS…*

Finda a etapa velocipédica a que assistira pela televisão, Job percorreu a pé uma escassa centena de metros e dirigiu-se para o jardim de cimento polido construído ao lado do velhinho, mas agora rejuvenescido, depósito da água da cidade.

Ajeitou o boné, que em sinal de respeito retirara da cabeça ao passar pelo portão do cemitério, e sentou-se no banco cujo encosto de ferro fundido o sol aquecia desde manhã cedo.

A época era de férias e o tempo convidava ao passeio, e rapidamente por ali apareceu um fulano moreno, atarracado, de aspecto grosseiro e com uma justa camisola de alças que permitia ver-lhe o musculado tronco, que se sentou ao seu lado e atirou, de chofre:
- Sou da idade do Joaquim Gomes… já lá vão 20 anos desde que ganhou a volta - concluiu com ar de quem sabia da poda.
- Isso é que é memória!
- Lembro-me como se fosse hoje… A malta lá na cerâmica até delirou… éramos os patrocinadores oficiais - rematou o vaidoso.

O desbloqueador de conversa tinha cumprido a sua função e num ápice o trombudo já dava palpites sobre tudo e mais alguma coisa, desde a cor das placas de cimento que revestem o piso do jardim, à ausência de sombras e até à pista ciclável…
- É uma pena! Tanto dinheiro gasto e na prática, as pessoas nenhum proveito tiram disto – afirmou convicto da sua razão.

Tanta tagarelice fazia até lembrar o chilrear da pardalada, ao final da tarde, na avenida Dr. Abílio Pereira Pinto. A pardalada, e não só, porque o discurso preferido agora é sobre aves… todo o tipo de aves… umas mais e outras menos raras, sejam melros com bicos das cores Benetton das rolhas de garrafa de espumante propagandeadas pela Rota da Bairrada, sejam falcões, aves de arribação e até mesmo cucos. Até já houve quem, a despropósito e sem que se saiba porquê, também tivesse falado de ovos e de cestas para justificar as omeletas que tem feito.

E como as conversas são como as cerejas, encadeiam-se umas nas outras de tal forma que é difícil parar, quando se fala de pássaros, também se fala de passarinhos e de passarões, e enquanto o diabo esfregou um olho, lá vieram à baila os galos e os poleiros… Palavra puxa palavra e sem se saber como nem porquê, a conversa rapidamente evoluiu para a questão de um nó de acesso à auto-estrada na área do concelho.
- Sinceramente, não percebo… com uma entrada para a auto-estrada a meia dúzia de quilómetros, como é que neste tempo de vacas magras ainda há quem tanto insista em ter outra na sede do concelho? – resmungou o carrancudo enquanto balançava as pernas e coçava o peludo peito.
- Sabe, amigo, por vezes há coisas que não parecem o que são… já pensou que interesses e que interessados é que esse nó está destinado a servir? – atirou Job. – É que já nem sequer há pudor… ainda se se batessem por um nó de acesso que servisse as zonas industriais da Palhaça ou de Bustos
- Pois… acho que tem razão… mas olhe que não é só isso… - atalhou a embezerrada personagem.
- Refere-se a quê?
- Olhe, a coisas como o incumprimento dos afastamentos de certas unidades industriais ou de alterações de cursos de rios, de valas foreiras e hidráulicas…
- Ah! Pensava que se referia à instalação de depósitos de resíduos de inertes ou à prospecção e exploração de depósitos minerais de caulino na área geográfica do concelho…
- Nem me fale disso, que fico já com um nó no estômago… - atirou o mal encarado enquanto rodava o palito que mantinha enfiado na acastanhada dentuça.
- Ah! Pois é… Isto, só de pensar nos interesses e nos interessados que estas situações claramente servem

Sem grande esforço, esta já não era propriamente uma conversa sobre galos; era mais sobre poleiros…, mas poleiros de galinheiro e, obviamente, sobre toda a imundície que os envolve.
- Enfim, nem vale a pena falar disso… - rematou Job.

Lá longe, o sol já caía sobre a cidade. Aproximava-se uma noite anunciada como de incontida folia. Job sabia que a Praça do Município estaria a abarrotar de gente, uma menos anónima que outra; mas também sabia que no dia seguinte, seriam poucos os foliões que por esse país fora se lembrariam da cidade e dos seus encantos.

Porque o que a estes interessa é que haja festas e alguém disponível para as fazer e pagar; nem que sejam para comemorar efemérides com uma dezena de dias de antecedência, em plena campanha eleitoral.

Tudo o resto são devaneios...

*Porque este conto não tem necessariamente conexão com a vida real, qualquer semelhança com a realidade pode ser, ou não, uma mera coincidência.