domingo, 18 de agosto de 2013

PODER LOCAL, PODER PESSOAL...

Embora não fosse minha intenção voltar a abordar nesta coluna, até à intervenção do Tribunal Constitucional, o problema da limitação de mandatos sucessivos nas autarquias locais, a multiplicação de pronunciamentos judiciais contraditórios sobre esta questão e as discussões que a esse propósito fui travando com vários amigos levam-me a retomar o assunto para tentar esclarecer alguns pontos essenciais

A Constituição da República enuncia o princípio da renovação nos termos mais amplos - "Ninguém pode exercer a título vitalício qualquer cargo político (...)" (n.° 1, artigo 118, CRP), mas logo a seguir determina que a imposição de limites à renovação sucessiva de mandatos apenas abrange os "titulares de cargos políticos executivos" e que, além disso, tais limitações têm de revestir a forma de lei (idem, n.° 2). 

Acresce, em matéria de proteção dos direitos fundamentais de participação política, que a Constituição apenas consente ao legislador o estabelecimento das "inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos" (n.° 3, artigo 50, CRP). 

A "liberdade de escolha dos eleitores" e a garantia de "independência dos eleitos" são portanto os únicos fins que, constitucionalmente, podem justificar a imposição legal de quaisquer inelegibilidades. A Lei Fundamental ocupa-se diretamente das limitações ao mandato do Presidente da República - máximo de dois mandatos consecutivos de 5 anos, condenação por crime de responsabilidade e renúncia ao cargo - e ao mandato dos juízes do Tribunal Constitucional - um único mandato, com a duração de nove anos.

Na sequência da revisão constitucional que criou o preceito relativo ao "princípio da renovação", só os titulares dos cargos de Presidente de Câmara e de Presidente de Junta viriam a ser objeto de medida restritiva de acumulação de mandatos, pela Lei n.° 46/2005. Embora se estranhe a ausência de debate sobre a oportunidade de alargar o princípio da renovação a outros eleitos, a limitação de mandatos dos Presidentes de Junta e de Câmara tinha plena justificação. 

Com o decurso do tempo, as relações de confiança pessoal e de proximidade facilitaram a concentração no presidente da autarquia de vastos poderes informais e influências difusas, avessos aos instrumentos institucionais de controlo político democrático. O paroquialismo e o caciquismo local chegaram a sobrepor-se, frequentemente, aos alinhamentos políticos, ideológicos e partidários, fazendo emergir uma nova realidade: os "dinossáurios". Reeleições sucessivas do mesmo presidente, década após década, qualquer que fosse o partido pelo qual se candidatasse, demonstravam uma notória redução da amplitude de escolhas que sobravam aos eleitores e a hegemonia da rede de interesses que promovia e financiava as sucessivas campanhas eleitorais ameaçando a "independência e isenção" do cargo. É claro que tudo isto se refere a cada autarquia em concreto e não a um conceito pessoal e territorialmente indeterminado, de titulares de uma certa tipologia de mandatos eleitorais.

Continuo a entender que a polémica Lei é suficientemente clara nos seus termos embora peque por omissões e reflita incoerências sistémicas que abriram as portas a desvairadas especulações. Por exemplo, a possibilidade de um Presidente de Câmara, ainda no decurso do mandato para que foi eleito, se candidatar a outra Câmara, devia ter sido prevista e proibida pela lei, mesmo em caso de renúncia ou suspensão do mandato. 

Por outro lado, não é coerente com a definição constitucional das autarquias como "pessoas coletivas territoriais" (art. 235 da CRP) a admissibilidade da candidatura de pessoas não residentes nessa mesma autarquia. Tal como disse aqui antes, são os laços de vizinhança e proximidade que permitem a identificação dos "interesses próprios das populações respetivas" e que justificam o autogoverno dessa população. 

O Presidente "de" Câmara ou "de" Junta é um instrumento de governo próprio da comunidade que o "mandatou". E mais não compete à lei do que assegurar a "liberdade de escolha" aos membros desta comunidade e de impor requisitos elementares de "isenção e independência" para o exercício deste cargo. Nem se augura que o Tribunal Constitucional vá deliberar em sentido diverso.

Retirada daqui