terça-feira, 5 de março de 2013

ERA UMA VEZ...

O ROMEIRO, O VENTO E O SOL
Consegue-se às boas, mansamente, o que não se consegue a mal, à força, de repelão. A melodia de uma flauta abre mais janelas do que uma trovoada

Vou exemplificar. 

O Senhor Vento e o Senhor Sol, lá do seu miradoiro, observam o que se passa cá em baixo. Os dois dispensam binóculos. 


Estavam eles entretidos, na sua quadrilhice de varanda, quando viram um romeiro, daqueles que percorrem a pé os caminhos que vão dar à galega Compostela. 

Ia de chapeirão e larga capa, que o cobria até aos pés.Nodoso cajado de ajudar às subidas, um saquitel ao ombro e a cabaça à cintura, para o vinho que aquece, eis o quadro completo do devoto de São Tiago, o Apóstolo, com catedral famosa na cidade de Compostela. 
- Aquele, ali, todo embiocado, que nem se percebe quem será, se é velho, se é novo, se é loiro, se moreno, está a irritar-me - disse o Senhor Vento, muito dado a caprichos. 
- Aposto que é novo e moreno - disse o Senhor Sol, por desfastio. 
- Pois eu acho o contrário. O homem é velho e branco de cabelo, que já foi loiro - apostou o Senhor Vento. Mas já vamos ver isso. Eu sopro com toda a força e descubro-o. 
- Aposto que não resulta - contrapôs o Senhor Sol, divertido com o passatempo. 

Levantou-se uma ventania de dobrar as árvores. O romeiro fincou-se ao cajado, puxou o chapéu para a cara e apertou a capa. Por mais que o Senhor Vento soprasse não houve meio de derrotar o viandante. 
- Primeira aposta perdida - riu-se o Senhor Sol. 

Ele a rir e seus raios a brilharem com mais alegria e calor. O Senhor Sol arredou umas nuvenzitas e concentrou toda a sua atenção sobre o romeiro, que seguia estrada fora, no passo firme de quem não pode faltar ao encontro. Santiago esperava-o. Mas andar à torreira do sol cansa. O romeiro começou por abrir a capa, depois dispensou-a e dobrada pô-la ao ombro. 

O Senhor Sol não o largava. 

À beira de uma fonte, o caminheiro parou. Desfez-se do chapeirão, que poisou com a capa e o cajado no rebordo do fontanário, despiu a camisa e, de tronco nu, refrescou rosto e corpo, na água que corria. Deliciado. 

Era loiro e jovem. 
- Desta vez não ganhou ninguém - concluiu o Senhor Vento. 
- Ganhou ele - disse o Senhor Sol, apontando o moço, que passava um lenço a escorrer água pela cara e pelos ombros. - E, embora tenha apostado que ele era moreno, eu acho que também já ganhei o dia. 

E, com todos os seus costumados vagares, o Sol começou a preparar as cores do entardecer.


António Torrado e Cristina Malaquias, aqui