terça-feira, 1 de janeiro de 2013

ERA UMA VEZ...

A FILHÓ DOURADA
A história que vou contar chama-se "A Filhó Dourada". Douradas, muito douradinhas são elas todas, empilhadas na travessa, como um castelo por conquistar

As últimas são as melhores. Têm mais açúcar, desfazem-se mal lhes tocamos? A gente pega delicadamente numa das que sobraram, dá-lhe um impulso que a ponha a deslizar na travessa, para ensopar bem, e num gesto rápido, sem pingar a toalha, mete-a na boca. O estalar dela, de encontro aos nossos dentes, é música com açúcar. 


Naquela ceia de Natal, todos tinham comido filhós. 
- Estão uma delícia - comentavam. 

E, porque estavam uma delícia, não tinha sobrado senão uma, no fundo da travessa. Era uma ilha minúscula e redondinha, rodeada por um mar de açúcar. Todos os olhos fitavam a filhó, que estalava em reflexos de oiro. Uma tentação. 

À roda da mesa, diziam para o avô: 
- Só ficou uma filhó. Porque é que a não come? 
O avô, então, virava-se para a avó e segredava-lhe: 
- Come tu, anda lá. 

A avó não queria. 
- Comam vocês - dizia ela, apontando para a filhó e para os filhos. 
- Eu já comi muitas - desculpava-se um. 
- Também tenho a minha conta - dizia outro. 
- Nem mais um bocadinho - declarava um terceiro. 

Parecia que nenhum queria tomar a responsabilidade de comer a filhó. No entanto, ela lá estava muito dourada, a recortar-se no meio da calda de açúcar. Apetecia mesmo ver e? comer. 

Mas, à volta da mesa, não se decidiam. E a filhó, a última filhó, andava de boca em boca, sem se fixar na boca de ninguém. De oferta em oferta, chegou a vez da tia Luísa propor: 
- Os pequenos que comam. Sempre quero ver qual dos meus sobrinhos chega primeiro à filhó. 

Os meninos não se precipitaram sobre a filhó apetitosa, como seria de esperar. Cada um ficou à espera do primo ao lado, e o primo ao lado do outro primo ao lado? Fosse por acanhamento ou fosse por que fosse? 
- Afinal ninguém a come - observaram do outro extremo da mesa. - Esta filhó deve ter mágica. 

Olharam uns para os outros e sorriram. 

A ceia estava no fim. Os meninos tinham sono. O avô cabeceava. Começou a ouvir-se o arrastar das cadeiras. Era a debandada. 
- Amanhã se arruma a casa - disse a tia Luísa, e apagou a luz da sala de jantar. 

Quando todos já se tinham ido embora, a filhó, no lusco-fusco, ao meio da mesa, começou a brilhar. Intensamente. Acreditem ou não, como se tivesse luz dentro. Como um pequeno sol ou um bocadinho de oiro, a desfazer-se em açúcar.

António Torrado e Cristina Malaquias, aqui