quinta-feira, 30 de agosto de 2012

PEIXINHOS DA HORTA

Não sabia a cor de nada. Nada de cor e salteado.
 
Tinha a memória de um elefante pequeno que ainda não sabe a cor das flores.
 
Nunca aprendeu a tabuada. Talvez fosse por causa disso que chorava tanto e que ria tão alto. Porque dois vezes nove quase nunca eram dezoito e nem sempre isso era uma coisa má.
 
Nem sempre os dias tinham tamanho que chegue para guardar as coisas que tinha para fazer.
 
Não gostava de cantos. Nem de trincas. Nem de gavetas mal fechadas ou portas entreabertas.
 
Tinha medo de acordar no escuro.
 
Três vezes nove eram vinte e sete e ela teimava em não querer saber disso para nada.
 
As coisas às vezes têm que ser exactamente como são. E isso fazia-lhe ter medo que já estivesse tudo decidido, como se ela não tivesse que fazer nada. Como se nada do que pudesse fazer fosse capaz de alterar o fim da história.
 
Os elefantes pequenos não sabem a cor das flores mas brincam às escondidas com os peixes vermelhos que fugiram de casa. E as folhas das árvores não têm medo do escuro porque nunca se trilharam em nenhuma gaveta.
 
Ela sabia que as coisas são como têm que ser e algumas têm que ser assim, como nos apetece. Como acreditamos nelas. Como as imaginamos. Porque se não for assim o jardim é pequeno demais para nós e não vai haver tabuada que nos console.
 
Nem sempre os pés no chão a levavam onde queria. De vez em quando preferia ir de cabeça no ar ou num autocarro qualquer cheio de palavras que serviam para contar histórias.
 
Outras vezes sentava-se num canto e aproveitava para arrumar as gavetas da memória e lá ia cantarolando a letra de uma canção qualquer que teimava em não querer saber de cor.
 
Tinha medo de acordar no escuro mas tinha mais medo que o céu fosse sempre da mesma cor ou que as coisas tivessem sempre o tamanho que tinham que ter.
 
Ela sabia que não tinha que ser assim. Quando regamos o jardim pode nascer dentro de nós uma coisa sem tamanho e que nenhuma palavra consegue dizer.
 
Gostava disso. E de peixinhos da horta.
 
Cristina Gameiro, aqui