terça-feira, 28 de agosto de 2012

ERA UMA VEZ...

 
O FIGITIVO
 
Era um fugitivo.
 
A coberto da noite, escapara-se da prisão, uma torre alta, rodeada por um muro mais alto ainda, e correra descalço, sobre cascalho e pedras soltas que não serviam de caminho senão a cabras de cascos duros.

Descia a montanha, coroada pela tal prisão. Olhando para trás, deixara de ver a silhueta assustadora das muralhas, tão escuras como a noite, o que era bom sinal. Sinal de que se distanciava cada vez mais dos soldados, que o perseguiriam, quando na manhã seguinte dessem com a cela vazia e uma corda pendurada das grades serradas.

O pior era depois. Os soldados montariam em cavalos, que galopariam desenfreadamente até apanhá-lo. Pois era. Mas aquele bocadinho de liberdade já ninguém lhe tirava. A respiração da noite, o cantar trémulo dos grilos, o faiscar dos pirilampos, o balido dos cabritos nos cortelhos e o céu imenso, coalhado de estrelas, valiam tudo, todos os riscos e até a desilusão de ser de novo feito prisioneiro e reconduzido à cela das suas angústias e revolta.
Sim, porque o homem estava preso injustamente. Invejas, intrigas tinham posto o rei do mal com ele, a ponto de lhe dar de morada, para o resto da vida, a torre, de que o muro cinzento à volta retirava toda a vista do mundo. Naquele tempo, rei que pusesse a mão sobre um dos pratos da balança da justiça valia mais do que todos os tribunais juntos.
Levantava-se a primeira claridade da madrugada. O fugitivo que descera a montanha aos tombos, de pés a sangrar, chegara à planície. E agora?
Estava na estrada de areia. Ah, tivesse ele um cavalo que, seguramente, se escaparia dos seus perseguidores. Mas onde descobri-lo? E com que dinheiro comprá-lo, se tinha os bolsos em farrapos como o resto da roupa que o cobria? Só Deus ou um anjo por ele podiam salvá-lo.
Numa curva da estrada que a luz do céu, a inundar-se de lilás, desenhava como a indecisa aguarela de uma nuvem, o homem viu uma vedação e, atrás da vedação, cavalos a pastar.
 
Eram brancos, de longas crinas.
Para lá dos cavalos serenos, um ferrador, num telheiro, ateava o forno, de fole em punho.
 
Apesar do fugitivo o ver de longe, percebeu-lhe, por trás das barbas tão brancas como as crinas dos cavalos, um sorriso feliz de quem vai começar o dia com gosto, até, talvez, com uma boa acção...
- Quer um cavalo para a viagem? - perguntou o velho das barbas brancas ao homem que muito penara já na prisão.
- Não tenho com que pagar-lhe - respondeu o pobre esfarrapado, numa voz de queixume.
- Paga depois - disse-lhe o ferrador, sorrindo, e fez um gesto de desimportamento, um gesto largo, tão rasgado e generoso que abrangia o espaço em redor e tudo o mais que a vista alcançava até ao horizonte ou à transparência azul do céu, para lá da finitude do tempo.
Depois acrescentou:
- Vou ferrar-lhe um destes cavalos, mas de um modo que eu cá sei...
Era um homem de mistérios. O fugitivo acolheu-se aos seus desígnios porque sentiu, no aperto do seu coração, que mais ninguém senão aquele homem de gestos suaves podia salvá-lo.
A manhã abria-se, empolgante. Lá, na prisão, já teriam dado pela fuga, já os soldados lançariam o alarme, já se aprestavam para persegui-lo.
O velho das barbas brancas ferrou um cavalo. O fugitivo montou-o. Ia para agradecer, mas o velho interrompeu-lhe as palavras e mandou-o seguir. Depois, ficou, à beira da vedação, a ver o cavalo fogoso a afastar-se, numa nuvem de pó.
Inclinou-se para o chão que o cavalo tinha pisado. Na areia, as patas ferradas do cavalo imprimiam-se como se o cavalo e o cavaleiro tivessem seguido o caminho oposto. Ele, ferrador experiente e avisado, tinha pregado as ferraduras ao contrário.
Quando o tropel dos perseguidores desceu à estrada e consultou as pegadas do cavalo fugitivo foi iludido pelo sentido que indicavam as ferraduras.
- Foi por ali - apontou o capitão dos guardas.
Mas ele tinha ido por acolá. Nunca mais o apanharam.
Também o ferrador desapareceu da paisagem. Nem cavalos nem vedação nem forno.
 
Nada. Só árvores, mato e o céu ao fundo.
 
António Torrado e Cristina Malaquias, aqui