1. Quando se fala de extinção ou
agregação de freguesias, com tudo o que isso implica de redução orçamental e de
funcionários, é indisfarçável, à direita e à esquerda – mas sobretudo nos
partidos do arco da governação - o mal-estar e uma evidente falta de consenso.
É
que esta reforma não deixará de ser acompanhada por uma recomposição do mapa
político e por isso vai afetar todos os partidos. Cabe, pois, começar por
perguntar: a quem interessa alterar a contabilidade político-partidária nas
eleições locais? Por que é que nenhum governo, ao longo de mais de 150 anos,
ousou reformar a administração local onde coexistem municípios despovoados e
freguesias maiores que municípios?
2. Convém, no debate em curso,
não ter memória curta e relembrar algumas verdades elementares: o memorando de
entendimento com a troika foi avalizado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS. Mas
dizer isto é apenas uma meia-verdade. É preciso acrescentar que a Lei n.º
22/2012 não foi votada favoravelmente pelo PS, PCP e Bloco de Esquerda e que uma
das medidas acordadas com a troika foi a redução do número de municípios.
Isto é: não apenas juntas de freguesia mas também câmaras municipais. Outra das
medidas que constam do memorando aponta para a necessidade de reduzir em 15% os
quadros dirigentes da administração local. Curioso foi ouvir na mesma altura o
então secretário de estado da administração local – o socialista José Junqueiro
– referir que seriam poucas as câmaras municipais extintas ou fundidas. Já nessa
altura de governação socialista se apontava para a redução do número de
executivos e assembleias de freguesia. Apontava-se para um número que rondava as
1500, praticamente um terço das existentes. E quanto á redução de dirigentes
autárquicos logo sentenciou António Costa: “é um absurdo”. E Rui Rio afinou pelo
mesmo diapasão: “ é uma imbecilidade técnica" (1). Que dizer de tudo isto?
Apenas uma coisa: que nenhum dos grandes partidos do arco da governação está
vivamente interessado em reduzir executivos camarários.
3. Isto, apesar das evidências
mostrarem que nos últimos anos a evolução dos recursos humanos das autarquias
andou em contraciclo com a contenção nos serviços centrais do Estado. Enquanto
estes, entre 2005 e 2009 (e a assimetria será, hoje, com toda a probabilidade
ainda maior) reduziram em 8% o número de funcionários, o pessoal das câmaras
aumentou 5,6% no mesmo período (2). Nada melhor, para iluminar esta questão, do que
recuperar algumas ideias expressas pelo Eng.º Fernando Silva num lúcido e
corajoso texto publicado há pouco mais de um ano no Jornal da Bairrada, a
que deu o título Os Municípios e as Finanças do País. Entre outras verdades que
ferem como punhais, afirma: “Para municípios com população entre 10.000 e 50.000
habitantes, os seus executivos camarários são compostos por 7 membros e as
respetivas assembleias municipais terão em média cerca de 40 membros (...). Os
membros dos executivos com pelouros atribuídos são remunerados e, após dois
mandatos a tempo inteiro, têm assegurada uma reforma. O tempo de permanência em
funções é também contado a dobrar para efeitos de reforma. Assim, ao fim de 37
anos de democracia temos várias dezenas de milhar de ex-autarcas com direito a
reforma, e somas exorbitantes são gastas nos seus vencimentos”(3). A esta e a outras verdadeiras
pedradas no charco dos interesses instalados ninguém ousou dizer nada. Apenas se
lhe referiu, de raspão mas em tom concordante, o diretor do Jornal da
Bairrada na edição de 19.05.2011. Tudo o resto ficou alagado em silêncio,
que o caladinho é o melhor...
4. Relembre-se que o chamado
“pacote autárquico” não se restringe apenas à controversa agregação de
freguesias. Inclui também a legislação eleitoral autárquica e a da própria
gestão municipal. A fazer fé no que vai sendo anunciado, o principal partido do
governo terá já ultimado a sua proposta de lei eleitoral. Mas precisa de a
negociar com o parceiro de coligação e em fase ulterior com o principal partido
da oposição. Fala-se mesmo numa verdadeira revolução no poder local. No
essencial essa proposta de lei contempla o seguinte: executivos homogéneos
escolhidos pelo presidente da câmara – isto é: sem vereadores da oposição – como
forma de se garantir a governabilidade; controlo político a cargo da assembleia
municipal, que fica com poderes reforçados, entre os quais o de poder chumbar a
lista de vereadores apresentada pelo presidente; os presidentes de junta
(deputados municipais por inerência) não vão poder votar a composição do
executivo municipal nem moções de censura aprovadas pela assembleia municipal;
finalmente, a proposta de lei eleitoral aponta para uma forte redução no número
de vereadores e de deputados municipais (4).
Que tem a dizer a isto a
população do concelho? E os principais agentes políticos? Será que os
presidentes de junta não se vão transformar em meras figuras decorativas se não
puderem, pelo menos, votar em matérias que diretamente lhes dizem respeito, nos
assuntos específicos da sua freguesia? Concordam com a diminuição do número de
vereadores e com as moções de censura autárquica, à semelhança do que acontece
com o governo? Aprovam o reforço do poder das assembleias municipais e a
constituição de executivos monocolores? Não serão estes incompatíveis com a
filosofia do sistema proporcional que consagra a representação das minorias? Não
funcionarão como uma espécie de maioria absoluta que tende a perpetuar os
equilíbrios políticos atingidos? Com a proporcionalidade afetada, o que vai
acontecer aos partidos com menor expressão eleitoral no concelho? É legítimo
anular-se, assim de uma penada, a correspondência entre a percentagem de votos e
a percentagem de deputados de cada partido? Subscrevem os cidadãos do concelho
que o Presidente da Câmara possa escolher o seu executivo de entre todos os
eleitos – incluindo os da oposição – e nessa medida possa igualmente
destituí-los durante o mandato caso entenda – no que isso tem de subjetivo - não
estarem a desempenhar bem o seu papel?
5 Regressemos à agregação de
freguesias para perguntar: as que se situam no perímetro urbano devem acabar,
transitando as respetivas competências para o município? E quanto aos concelhos:
não seria de agregar alguns para lhes dar escala? Fará sentido continuar a
existir um concelho como o de S. João da Madeira? E que dizer da limitação dos
mandatos dos autarcas? Continua a fazer sentido, caso passem a ser controlados
pelas moções de censura? E os autarcas condenados em processo: permanecem em
funções ou devem ser pura e simplesmente demitidos e impedidos de se candidatar
a novos mandatos? E por que não suspender o mandato, até à conclusão do
processo, aos autarcas constituídos arguidos ou até acusados, substituindo-os
pelo candidato posicionado imediatamente a seguir na lista vencedora? É que
agregar freguesias deixando tudo o resto na mesma é um pouco o
vira-o-disco-e-toca-o-mesmo de que já
estamos a ficar cansados. Não é uma verdadeira reforma, mas sim uma caricatura
distorcida dela própria. Tantas perguntas. Quantas respostas? Tudo isto ficou
por dizer nas sessões de esclarecimento. Culpa da assembleia municipal? Não
certamente. Culpa de todos nós, que parecemos distraídos e abstraídos do que se
passa à nossa volta. O silêncio, que muitas vezes é uma forma de poder, pode ser
também uma forma de consentimento.
6. Estas são algumas das
questões urgentes e inadiáveis a que urge dar resposta. Não tanto por se
encontrarem na ordem do dia, mas precisamente porque às vezes o não estão. Não
se veja neste texto um libelo acusatório contra os partidos políticos, porque
quem preza a democracia sabe que esta não existe sem eles. Nem uma rejeição
liminar da reorganização administrativa territorial autárquica. Quando muito,
assume-se contra “esta” reorganização. Acontece que se multiplicam os
sinais de enfado para com a falta de qualidade da nossa democracia. Há sinais
evidentes de descrédito e desconfiança. Por isso se exigem respostas claras e
assertivas para problemas complexos.
Ninguém desconhece que nas
estruturas partidárias a contestação interna é por vezes vista como uma forma de
traição, sobretudo quando tornada pública. Como sublinhou o Eng.º Fernando Silva
no texto já citado. Muitas vezes não há oposição interna “pois isso poderia ser
razão suficiente para ser excluído das listas de candidatos (...). Poucos são
aqueles que, na praça pública, realmente dizem o que lhes vai na alma e também
não o fazem nos locais próprios por receio de retaliação sobre si, seus
familiares ou empresas”. Elucidativo, por vir de quem vem, de quem sabe do que
fala.
Também por isso se saúda, no
debate que está a ser travado sobre a agregação de freguesias, a independência
de espírito e até o desassombro de alguns conhecidos militantes políticos,
nomeadamente dos mais próximos ideologicamente do atual governo. Em blogues ou
até nas reuniões de esclarecimento sabem colocar os interesses da sua terra, ou
das populações do concelho, acima dos particulares interesses do partido em que
militam. Dizendo abertamente que a Lei n.º 22/2012 é má e foi gizada à revelia
dos autarcas. Neles, há ponderação e respeito por direitos conflituantes.
Batalham pela razão quando outros procuram excitar as emoções que transformam os
cidadãos em súbditos. Para eles, um aceno de simpatia.
Voltarei ao tema, para (talvez)
então concluir. Porque a pretexto da mudança o objetivo não pode ser abafar as
vozes discordantes em nome do irrefragável cumprimento da lei.
(1) Expresso, 07.05.2011, p. 4.
(2) Público, 08.05.2011, p. 3.
(3) Jornal da Bairrada, 05.05.2011, p.
2.
(4) Expresso, 21.07.2012.
Carlos Braga, aqui