As nossas relações nem eram más. Seguiam a lógica duma rotina
antiga, que se foi instalando, depois de tomarmos juízo e derrubarmos os muros
da nossa guerra fria. Que também a tivemos.
Ele acampava na via pública e eu tinha aposentos na marquise, mas sentindo os donos fora, eu dava sinal, montávamos arraial na sala das visitas e trocávamos gentilezas: ele inventava-me petiscos e eu deixava-o lamber-me a tigela do leite e dançava-lhe às vezes no lombo o crazy-horse.
Ele acampava na via pública e eu tinha aposentos na marquise, mas sentindo os donos fora, eu dava sinal, montávamos arraial na sala das visitas e trocávamos gentilezas: ele inventava-me petiscos e eu deixava-o lamber-me a tigela do leite e dançava-lhe às vezes no lombo o crazy-horse.
Não era fácil esta partilha, mas lá nos arranjávamos, e quando
os donos lhe levavam os restos do jantar, chegava a ter pena dele.
Há dias os patrões sairam. Abri a porta, convidei-o a entrar, e
o menino deitou-se logo em frente à televisão ligada, para ver as notícias. Não
quis brincadeira, o grande estúpido!
Eu bem que o estranhei esquisito no dia seguinte. Pareceu-me altivo, ensoberbado, a olhar-me lá do alto, nas suas tamanquinhas. Quando nessa noite os patrões lhe levaram os restos, roçou-se-lhes nas pernas, sem pudor, e só faltou impor-lhes dormir no quarto deles. No tapete, estou eu a supor!
Gastei o dia seguinte a observá-lo e sempre que o olhava, o que via era um tipo com direitos: eu seja cão se não era!
E quanto mais eu olhava, mais direitos me exibia: recusou passar a tarde comigo, desdenhou-me a tigela do leite ... E à noite, quando me viu ir às meninas, foi logo delatar-me à dona. O acusa-cristos! Não dormi toda a noite.
Na manhã seguinte exigi uma explicação aos patrões. E eles, muito dengosos, a fingir-me hipocrisias nos bigodes, enquanto me sugeriam hierarquias, regras de precedência, protocolos ... Acabaram por me confessar que o artista ia ter uma visita de alguém muito especial, e que finalmente iria fazer-lhe justiça.
Eu fui à minha vida, não me dei por achado, e quando os patrões sairam, ofereci ao “menino” uma trela. Na coleira da trela ia o pescoço do justiceiro, o Presidente da Câmara, que pelos vistos nem todos sabem quem é.
Ficou insuportável, de vaidoso, e quem o queria ver era na rua, a levar o político ao jardim.
Tirei informações na vizinhança e acabei por saber que afinal a visita não tinha dado em nada, e que em vez de ser para anunciar a criação do canil municipal, o Senhor Presidente da Câmara o tinha visitado para lhe dizer que apesar de em campanha eleitoral ter dito que o cenário de animais abandonados, doentes, maltratados e famintos que proliferam por todo o concelho, é moralmente degradante, o Executivo Municipal ainda nem sequer tinha tido perdido tempo a pensar quando é que iria cumprir esse compromissso que, a bem da saúde pública e dos direitos dos animais, tinha assumido.
Perante a dureza da realidade, ele lá teve que soltar o benfeitor. Voltou para a rua, sozinho, e devolveu-me a trela, acabrunhado. Metia dó, coitado!
Quando um tipo se fia em certos gajos, é no que dá: é raro acabar bem!
E acabou-se a confiança de voltar a ir lá a casa: que fique na rua, que é o lugar dos cães vadios!
Alma de Deus
Eu bem que o estranhei esquisito no dia seguinte. Pareceu-me altivo, ensoberbado, a olhar-me lá do alto, nas suas tamanquinhas. Quando nessa noite os patrões lhe levaram os restos, roçou-se-lhes nas pernas, sem pudor, e só faltou impor-lhes dormir no quarto deles. No tapete, estou eu a supor!
Gastei o dia seguinte a observá-lo e sempre que o olhava, o que via era um tipo com direitos: eu seja cão se não era!
E quanto mais eu olhava, mais direitos me exibia: recusou passar a tarde comigo, desdenhou-me a tigela do leite ... E à noite, quando me viu ir às meninas, foi logo delatar-me à dona. O acusa-cristos! Não dormi toda a noite.
Na manhã seguinte exigi uma explicação aos patrões. E eles, muito dengosos, a fingir-me hipocrisias nos bigodes, enquanto me sugeriam hierarquias, regras de precedência, protocolos ... Acabaram por me confessar que o artista ia ter uma visita de alguém muito especial, e que finalmente iria fazer-lhe justiça.
Eu fui à minha vida, não me dei por achado, e quando os patrões sairam, ofereci ao “menino” uma trela. Na coleira da trela ia o pescoço do justiceiro, o Presidente da Câmara, que pelos vistos nem todos sabem quem é.
Ficou insuportável, de vaidoso, e quem o queria ver era na rua, a levar o político ao jardim.
Tirei informações na vizinhança e acabei por saber que afinal a visita não tinha dado em nada, e que em vez de ser para anunciar a criação do canil municipal, o Senhor Presidente da Câmara o tinha visitado para lhe dizer que apesar de em campanha eleitoral ter dito que o cenário de animais abandonados, doentes, maltratados e famintos que proliferam por todo o concelho, é moralmente degradante, o Executivo Municipal ainda nem sequer tinha tido perdido tempo a pensar quando é que iria cumprir esse compromissso que, a bem da saúde pública e dos direitos dos animais, tinha assumido.
Perante a dureza da realidade, ele lá teve que soltar o benfeitor. Voltou para a rua, sozinho, e devolveu-me a trela, acabrunhado. Metia dó, coitado!
Quando um tipo se fia em certos gajos, é no que dá: é raro acabar bem!
Vai ser um rebuliço, mas podem crer que tão cedo, o parvalhão não
me volta a ver os dentes!
E acabou-se a confiança de voltar a ir lá a casa: que fique na rua, que é o lugar dos cães vadios!
Alma de Deus
(Em reposição: anteriormente publicado no extinto http://blog.oliveiradobairro.net/)