Não há indício mais flagrante do desvario que se apoderou de
alguns dirigentes europeus - confrontados com a maior crise que alguma vez
atingiu a União - do que a perversidade dos "lugares comuns" invocados para
qualificar a situação presente e a sua dramática indigência.
Agora, a dívida foi "requalificada" e passou a designar-se por "dívida
soberana", provavelmente por antítese da perda da soberania monetária dos
estados que aderiram ao euro, vítimas das assimetrias provocadas pela adoção da
moeda única sem a correspondente integração dos instrumentos financeiros e das
políticas económicas adequadas.
Todavia, a "punição" prescrita pela velha dupla franco-alemã, de Merkel e
Sarkozy, previa a redenção milagrosa dos devedores, pela estrita submissão às
"políticas de austeridade". Os resultados são bem conhecidos. O que inicialmente
foi descrito como a "exceção" grega, continuou a agravar-se, alastrou a Portugal
e ameaça a Espanha e a Itália. Na Holanda, caiu um governo dependente do apoio
da extrema-direita, na Alemanha, o partido no governo sofreu no passado domingo
mais uma clamorosa derrota nas eleições da Renânia do Norte-Vestefália. Na
França, o indispensável aliado das "políticas de austeridade" impostas na
Europa, Nicolas Sarkozy perdeu também as eleições. Entretanto, na Grécia, a
democracia enunciou, precariamente, os insondáveis paradoxos de
ingovernabilidade.
Embora se tenha transformado na banalidade mais comum, é verdade que "as
crises são uma oportunidade". Isto significa apenas que não sendo desejadas e
muito menos desejáveis, também as crises acabam por passar e que cada um, de
facto, constrói o seu próprio futuro, no presente. Não seria mais do que isto, o
que o primeiro-ministro português terá pretendido dizer aos desempregados, como
se aqui não houvesse, também, um terrível drama coletivo, um grave problema
social e um sério desafio à governação. O "memorando de entendimento" com a
troika, como todos bem se recordam, foi concluído à pressa e assinado a
contragosto por um governo demissionário, sem margem negocial e com uma
legitimidade democrática diminuída, na véspera de eleições antecipadas. Para
compensar a evidente fragilidade desse compromisso, a principal força política
da oposição - que iria vencer as eleições e formar o atual governo - declarou a
sua adesão ao "memorando" e prometeu, com inusitado entusiasmo, que pretendia
mesmo "ir além" dos compromissos que o governo cessante admitia com resignação.
Não obstante, há quem tente agora confundir a necessidade incontornável de
honrar os compromissos assumidos nesse "memorando" conjuntural, com a submissão
fatal à leitura ideologicamente empenhada que dele faz a maioria governante, e
quem pretenda continuar a excluir do debate político democrático a orientação
até hoje hegemónica do defunto diretório europeu.
Mas enganam-se! Como sempre, as crises abrem múltiplas oportunidades. À
direita e à esquerda, só os demagogos podem prometer para breve um futuro
radioso mas convém não esquecer que o chamado "Estado de Bem-estar" emergiu da
grande depressão dos anos 20 e que a "democracia social" europeia foi
construída, pela esquerda e pela direita, sobre as ruínas da Segunda Guerra
Mundial. Que não nos falte a ousadia indispensável para enfrentar os desafios,
promover as mudanças... e prevenir novas catástrofes.
Retirada daqui
