quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O FIM DO CORONEL

O "Mad Dog do Médio Oriente", como lhe chamou Ronald Reagan, deixara de ser revolucionário anti-imperialista para se tornar aliado do Ocidente contra o terrorismo. Hoje foi capturado e morto.

Em 2009, seis dias de extravagantes festividades, que incluíam um "show de mil camelos e 40 balões de ar quente", assinalaram quatro décadas de poder de Muammar Khadafi e a transformação da Líbia de pária em parceiro de europeus e americanos.

Na altura, a analista Molly Tarhuni, do Royal Institute of International Affairs (Chatham House), em Londres, descrevia as cerimónias como “um ponto de viragem", ou “a prova de que Khadafi é um sobrevivente e que muitos o subestimaram”. Ele pode ser um excêntrico, salientava Tarhuni, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone, mas o Ocidente precisa dele. “Porque a Líbia possui reservas confirmadas de petróleo que ascendem a 41,5 mil milhões de barris e de gás natural num total de 1490 biliões de metros cúbicos de gás natural entre as dez maiores do mundo. A sua importância económica, política e de segurança não se alterou em 40 anos.”

Foi, pois, um Ocidente embaraçado que primeiro assistiu e depois protestou contra a sanguinária repressão de milhares de manifestantes que, na sequência das revoluções contra Ben Ali, na Tunísia, e de Hosni Mubarak, no Egipto, se viraram contra o seu tirano. Quando o balanço de mortos já ultrapassava os 200, segundo a organização de direitos humanos Human Rights Watch, o filho favorito do líder, Saif al-Islam (Espada do Islão) Khadafi, foi à televisão prometer concessões, alertar para o risco de uma guerra civil, mas também deixar uma ameaça: o seu pai resistiria “até à última bala”. Observou um comentador citado pela Al-Jazira: “Khadafi mata ou morre”.

Foi a 1 de Setembro de 1969 que Khadafi, um capitão do Exército de 27 anos, tratado pelos amigos como al-jamil (o bonitão), derrubou a monarquia e instituiu uma “jamahiriya” (Estado de massas) um dos seus muitos neologismos. O rei Idris al-Sanussi estava em tratamento na Turquia e não regressou. O príncipe herdeiro, o sobrinho Hassan, foi obrigado a abdicar.

No dia 8, o chefe do novo governo era Sulayman al-Maghribi, um dos oficiais golpistas, mas, no dia 13, Khadafi, formado numa academia militar britânica, já era o "Líder Irmão" e "Guia da Revolução", os únicos títulos que reteve, a par da patente de coronel (recusou ser promovido a general).

A "revolução socialista", sem sangue, foi apresentada por Khadafi como reacção contra a corrupção da dinastia Sanussi e a sua "subserviência aos imperialistas" desde a independência, em 1951. Uma das primeiras decisões que tomou foi ordenar o encerramento das bases do Reino Unido e dos EUA, e a retirada das tropas. Seguiram-se expropriações e nacionalizações de outros interesses estrangeiros.

Como uma nova doutrina a que chamou "Terceira Teoria Internacional", nem capitalismo nem comunismo, Khadafi tentou mobilizar os árabes para o sonho de uma união, sob a liderança do seu ídolo, o egípcio Gamal Abdel Nasser. Os árabes viam nele "um louco" e recusaram segui-lo.

Desiludido, trocou o pan-arabismo pelo pan-islamismo, competindo com os sauditas pela influência muçulmana em África. Tinha muito dinheiro para gastar, e não só em mesquitas.

Também foi banqueiro da Organização de Libertação da Palestina (OLP) e da Frente Polisário; do IRA e de grupos rebeldes da Libéria e Serra Leoa; de Carlos, O Chacal, e de Abu Nidal.

Berlim, Lockerbie, Al-Qaeda
Os anos 1980 ficaram marcados por dois brutais atentados: em 1986, na discoteca La Belle, em Berlim (três mortos e 200 feridos, alguns soldados americanos); em 1988, na cidade escocesa de Lockerbie (270 mortos na explosão de um avião da Pan Am). Ronald Reagan amaldiçoou o "Mad Dog do Médio Oriente" e ripostou, mandando bombardear Trípoli e Benghazi. Morreram 60 militares e civis, incluindo a filha adoptiva de Khadafi.

No final dos anos 1990, submetido a quase uma década de sanções internacionais e enfrentando uma oposição islamista, o beduíno que corre o mundo na sua tenda mudou de rumo. Em 1998, foi o primeiro a pedir um mandado de captura para Bin Laden. Bill Clinton ignorou a sua proposta de cooperação, mas George W. Bush não lhe virou as costas. A 12 de Setembro de 2001, um dia depois dos ataques da Al-Qaeda, o então chefe dos serviços secretos líbios, Musa Kusa, contactou a CIA e disse-lhes: "Esta é a nossa lista de suspeitos." Em troca, teve autorização para os seus agentes interrogarem presos líbios em Guantánamo.É claro que antes, em 1998, Khadafi já havia concordado em entregar os dois suspeitos de Lockerbie para serem julgados, e aceitara "responsabilidade" (mas não culpa) pelo ataque. Pagou 2,7 mil milhões de dólares em indemnizações às famílias das vítimas. No ano seguinte, após a suspensão das sanções, os investimentos estrangeiros na Líbia atingiram os 8000 milhões de dólares.

A 20 de Agosto, Khadafi conseguiu a libertação do único condenado, Abdel Basset al-Megrahi, supostamente, membro da sua tribo. Os britânicos invocaram "razões humanitárias" para Megrahi não cumprir 27 anos de uma pena perpétua sofre de cancro e tem "menos de três meses de vida", mas especula-se que foi trocado por lucrativos acordos comerciais com o mais próspero país do Norte de África.

A reabilitação
Em 2003, o imprevisível Khadafi tomou a mais inesperada das decisões: anunciou o fim do programa de armas químicas e nucleares. Seguiram-se cimeiras com Tony Blair (e um contrato com a British Petroleum/BP no valor de 90 milhões de dólares); com Nicolas Sarkozy (que assegurou acordos de 10 mil milhões, a maioria no sector da defesa); e com Silvio Berlusconi (que garantiu negócios de 5000 milhões e o controlo da imigração clandestina, após ter pedido perdão pelo período colonial italiano).

A Líbia atrai os europeus porque o custo de transportar o seu petróleo, pelo Mediterrâneo, é inferior ao dos países produtores do Golfo Pérsico. Os líbios, por seu turno, a dar os primeiros passos para uma economia de mercado (reduziram subsídios, privatizaram mais de cem empresas desde 2003 e pediram adesão à Organização Mundial do Comércio/OMC), estão sedentos de capitais para modernizar as suas obsoletas infra-estruturas e fazer face a um elevado desemprego.

Khadafi estava a colher os frutos de ter mudado de campo. "Hoje, a Líbia é membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU [dois anos de mandato iniciado em Janeiro], fez parte do conselho de governadores da Agência Internacional de Energia Atómica, participou na cimeira do G8 como presidente da União Africana, e vai ascender [em Setembro] à presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas", notou Molly Tarhuni na entrevista ao PÚBLICO.

Ter chegado aqui foi mérito do coronel que tomava “todas as decisões, e tinha “a última palavra", acrescentou a analista. A grande questão que Tarhuni colocava não era se ele seria alguma vez derrubado – algo que ela considerava “muito improvável” num país com menos de seis milhões de habitantes, politicamente pouco activos e sob controlo rígido das forças de segurança – mas “o que vai acontecer quando ele sair de cena."

Khadafi não tinha um herdeiro designado, embora dois dos seus oito filhos estivessem, aparentemente, a preparar-se para lhe suceder.

Um era Seif al-Islam, actualmente em fuga, director de uma fundação de "caridade" internacional, que ajudou a negociar as indemnizações de Lockerbie e a libertação de cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestiniano, condenados sob a acusação de terem "deliberadamente infectado" doentes de um hospital com o vírus da sida. Outro era Mutassim Billah, que as forças das novas autoridades líbias dizem ter sido capturado no raide que terminou com a morte de Khadafi.

Mutassim tentou derrubar o pai num golpe militar mas escapou ao destino que tem sido reservado aos dissidentes (executados por esquadrões da morte). Foi perdoado, regressou de um esconderijo no Egipto e é agora o principal conselheiro de segurança nacional. Seif, Mutassim e os restantes irmãos estiveram entre os milhares convidados a assistir às festas em honra do filho de camponeses que, em 1969, destronou o rei Idris para, em 2009, se coroar a ele próprio "rei dos reis de África".
Texto substituído às 14h33.

Margarida Santos Lopes, aqui