Vítor é um homem ansioso: quer falar, quer explicar, quer desabafar, quer contar com todos os detalhes a grande desgraça que lhe aconteceu.
E assim que entra na sala de audiências, calças Levi''s contrafeitas, um rolo de papéis na mão, óculos de sol na cabeça, carteira de couro à vista, interrompe logo o juiz.
O homem quer falar. E o juiz certamente irá compreender os seus motivos. Quem é que não tem um deslize de vez em quando? Há deslizes e deslizes, é certo. Mas um deslize destes não há quem não compreenda. E o juiz: "Tenha calma, senhor Vítor Manuel, já fala, acalme-se."
Do princípio ao fim do julgamento, Vítor, o homem ansioso que fala de mais e interrompe por tudo e por nada, só hesita e se engasga uma vez, quando se vê obrigado a responder à mais temível das perguntas:
"Estado civil, senhor Vítor?"
"Hum... Hammm.... Hum... casado."
A estranha (e cómica) hesitação tem uma razão de ser: Vítor deixou a mulher há 15 dias. E há coisas a que é difícil habituarmo-nos - como quando começa um novo ano e no primeiro mês nos engamos repetidamente a escrever a data. "Agora vivo com outra companheira...", diz o réu. Mas não foram os problemas pessoais do Vítor que o trouxeram ao tribunal. À semelhança da maioria dos arguidos da pequena instância criminal, o homem que fala de mais também bebe de mais. Vítor foi apanhado a conduzir embriagado às 19h25 de uma sexta-feira. O aparelhómetro da polícia não costuma mentir e acusou, de sua sentença, uma taxa de 2,27 g/l.
"Sotôr, eu quero dizer que nesse dia tinha saído do trabalho e a minha actividade profissional é ao nível de todo o país e..."
"Tenha calma, homem, já fala, já fala. Tenha lá calma, que eu ainda estou aqui a tentar decifrar o resto do auto, que esta letra aqui não está nada famosa", diz o juiz.
E o homem ansioso que quer dizer este mundo e o outro não tem outro remédio senão remeter-se ao silêncio, com a certeza de que quando o deixarem falar, todo o tribunal, todos os presentes, vão compreender que a sua história tem uma explicação. Vítor acredita que tem um depoimento credível para apresentar. Finalmente, o juiz dá-lhe a palavra. Atenção, que é agora que o Vítor se vai defender e provar que está inocente:
"Sotôr, o que se passou foi a seguinte situação. Eu saí de casa às quatro da manhã para ir para a estação da Malveira com outro colega. Chegámos a Lisboa por volta das seis da manhã, parámos numa roulotte, comi uma bifana e bebi duas cervejas."
"Mas o senhor só foi apanhado às 19h15 da tarde..."
"Eu sei, sotôr, mas é aí que eu quero chegar: isto foi toda uma sequência de ingestão de bebidas alcoólicas, não foi uma coisa instantânea. Prontos, como eu estava a dizer, houve essas cervejas logo de manhã na roulotte, depois... antes do almoço bebi dois martinis simples. Depois um copo de vinho ao almoço. Depois tinha de ir buscar a minha companheira e bebi mais uma cerveja antes..."
O juiz esforça-se por acompanhar a longa enumeração. "Portanto, o senhor diz que bebeu duas cervejas, dois martínis e um copo de vinho..."
"Sotôr, desculpe, falta aí uma cerveja."
Não há nada como ser preciso e honesto. Mas se calhar desta vez, Vítor, podias ter-te contido um bocadinho mais (isto somos nós a imaginar o que paira na cabeça do advogado de defesa a esta altura do campeonato).
"Gostaria ainda de acrescentar, senhor juiz..."
(E o advogado já meio a contorcer-se na cadeira como se tivesse dores.)
"...que juntamente com a ingestão destas bebidas alcoólicas, ingeri sempre alimentação, excepto na imperial a meio da tarde".
O que mais preocupa o Vítor é que é técnico de telecomunicações e agora anda a fazer umas fiscalizações em Meleças e precisa da carta. Queira Deus que o juiz não lhe tire a carta. "Quer dizer mais alguma coisa em sua defesa?", pergunta-lhe o magistrado.
"Sotôr, eu gostava de salientar que durante a minha actividade profissional faço muitos quilómetros e já fui mandado parar em várias actividades STOP e nunca acusei mais de 0,30 g/l".
(E o advogado outra vez a contorcer-se, com ar de pânico...)
Mais palavra, menos palavra, o juiz não foi mesmo na conversa: 500 euros de multa e três meses e cinco dias sem carta. "Isto dói, isto custa, mas é para cumprir, ouviu, senhor Vítor?"
Desta vez o homem que fala demasiado nem respondeu.
Rosa Ramos, aqui