O Serviço Nacional de Saúde perdeu o único médico que realizava as cirurgias de mudança de sexo em Portugal.
Um forte revés para os transexuais, que viram, ontem, terça-feira, Cavaco Silva promulgar a lei que simplificará a mudança de sexo e do nome próprio no Registo Civil.
Durante 16 anos, os transexuais portugueses realizaram as cirurgias de mudança de sexo no Serviço Nacional de Saúde, deparando-se com o facto de ter de processar o Estado em tribunal, para alterarem o nome e o sexo na sua documentação. Agora, com a promulgação por Cavaco Silva do diploma que simplifica o procedimento no Registo Civil e desjudicializa a segunda fase do processo, aqueles cidadãos não têm quem os opere.
O Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, ficou sem o clínico que assegurava em Portugal as operações de mudança de sexo e não conseguiu substitui-lo. Autor de uma técnica cirúrgica inovadora em todo o mundo, João Décio Ferreira decidiu abandonar o Serviço de Cirurgia Plástica daquela unidade, devido à proposta que administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte lhe fez para se manter ao serviço, após se ter reformado aos 65 anos, em 2009.
Segundo o cirurgião, com 42 anos de serviço, a proposta passava por receber um salário "ofensivo". "Propuseram-me um horário de 35 horas semanais pagando-me um terço da reforma ou do ordenado. Isto é, seis euros por hora, sem descontar o IRS", explicou, ao JN. "Isto é menos que uma empregada doméstica. Quase uma esmola dada pelo Serviço Nacional de Saúde, que não tem mais ninguém para tais tratamentos cirúrgicos. E o jovem que ficou no Santa Maria ainda tem dois anos de especialidade pela frente", acrescentou.
"Ainda trabalhei e operei no mês de Janeiro de forma grátis. No mês de Fevereiro tenho ido a vários hospitais sem ganhar um cêntimo", revelou o médico, de 66 anos, admitindo só colaborar "por amor à camisola". "Por 10 horas de bloco operatório (cinco cirurgias) receberia menos de 40 euros", frisou.
Nos últimos anos e graças a técnicas que permitem ora construir uma vagina com intestino delgado, ora a construção de um pénis com tecido da zona abdominal e enxerto de cartilagem da costela, João Décio Ferreira tornou-se não só conhecido mundialmente, como, depois de reformado um outro profissional na área, assumiu a transformação dos transexuais portugueses na totalidade. Tanto que, por aqueles, é visto como "um segundo pai".
"Tenho recebido todos os meses na minha conta bancária 1911 euros líquidos desde que me reformei em 24 de Junho de 2009. Após ficar reformado, o HSM propôs-me um contrato de 15 horas semanais só para assistência a pessoas com Perturbação de Identidade de Género, por não haver mais ninguém no SNS para prosseguir com esses tratamentos cirúrgicos. Aceitei esta proposta para não deixar toda a "minha gente", os e as transexuais, sem os tratamentos cirúrgicos a que tinham direito no SNS e porque tinha esperança de mais tarde ou mais cedo aparecer seguidor", admitiu, por outro lado, numa declaração escrita que elaborou sobre esta sua despedida.
"Tenho pena de deixar tanta gente numa situação eventualmente desesperada. Com a nova lei vão ter finalmente o nome e o sexo mudado nos seus documentos. Mas não vão, por agora, na sua maioria ter o que sempre mais desejavam desde criança: adaptar o seu corpo ao seu género, ao género do seu cérebro", referiu ainda.
As operações de mudança de sexo passaram a ser legais em 1984. Todavia, a Ordem dos Médicos (OM) punia os profissionais que as realizavam, por discordar de tal intervenção. Só em 1995, a OM alterou a sua posição, mas é dali que ainda hoje parte a autorização para a cirurgia
Nuno Miguel Ropio, aqui