sexta-feira, 4 de março de 2011

ENTRE-OS-RIOS: UMA TRAGÉDIA COM 10 ANOS

Dez anos após a queda da ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, Manuel Santos, agora com 60 anos, ainda fica chocado quando se lembra da frase que ouviu numa tasca pouco tempo depois da tragédia que lhe levou dez familiares.

Entrou e ao primeiro suspiro viu-se a ser acusado de ter ganho o totoloto das mortes, com as indemnizações que o Estado se apressou a conceder às famílias afectadas.

A maior parte dos corpos das vítimas ainda não tinha aparecido quando o Estado entregou às famílias 49 mil euros, valor a que foram acrescentados entre 4,9 e 20 mil euros no caso da existência de um herdeiro e dependendo do grau de parentesco: "Muitos habitantes de Castelo de Paiva ainda dizem que nos saiu o totoloto, mas a verdade é que perdemos os nossos familiares.

Dez anos depois ainda somos ignorados e ofendidos", lamenta. Muitos dos corpos da maioria das pessoas que morreram no colapso da ponte Hintze Ribeiro na madrugada de 4 de Março de 2001 nunca chegaram a aparecer: apenas 24 dos 59 passageiros que seguiam no autocarro e nos dois carros particulares que caíram ao Douro foram localizados, muitos em Espanha. Castelo de Paiva mantém um ambiente de silêncio, acentuado pelo monumento em memória das vítimas numa descida até ao rio. Na cripta do memorial, com um anjo dourado no topo, destacam-se as fotos das vítimas e os versos de despedida e esperança na "terra arável do sonho".

Desapareceram famílias inteiras "O meu irmão nunca apareceu. Disse-lhe adeus naquele dia sem saber que me estava a despedir dele. Deixou de existir e sem luto", recorda ao i Eliana Moreira, irmã de Hélder Moreira, o rapaz que conduzia o autocarro. "Adorava conduzir. Conduzia, naquele dia, o autocarro sem cobrar nada", adianta Manuel Santos, zelador do memorial às vítimas.

Manuel e a mulher, Ilda Martins, disparam incessantemente os dedos às fotografias das vítimas num corredor de caras que marca o interior do monumento. Houve famílias inteiras que sucumbiram à tragédia, crianças sorridentes e jovens que não voltaram: "Esta rapariga foi encontrada no rio agarrada ao filho bebé", recorda Ilda, que também perdeu a mãe, o irmão e o sobrinho e quase todos os dias vai ao memorial.

Eliana Moreira, agora vice-presidente da Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Entre-os Rios (AFVTER) é outra habitante de Entre- -os-Rios que recorda as críticas por causa das indemnizações: "Nem quero comentar isso, não tem justificação. Só fica a saudade e a revolta por ninguém ter sido responsabilizado pelo acidente", diz.

Os seis técnicos da Junta Autónoma de Estradas que foram a julgamento foram absolvidos e nenhum responsável político se sentou no banco dos réus. "Dez anos depois a revolta ainda nos consome, porque ninguém foi condenado pela justiça", critica Eliana. Já Ilda não tem dúvidas em afirmar que o "julgamento foi uma grande bofetada nas famílias das vítimas", refere.

Monarquia Augusto Moreira, presidente da AFVTER, perdeu a mãe e o irmão. E entende que "houve negligência suficiente do Estado para a ponte cair. Quando as pontes não são reparadas, um dia caem", diz. O responsável pela associação aponta o caminho e não tem dúvidas em dizer que é necessário relembrar a tragédia: "Queria nunca ter vivido isto, mas é bom recordar. Também precisamos de falar um pouco sobre isto."

Para Moreira, a tragédia mudou algumas coisas em Castelo de Paiva. "O Estado investiu e fez algumas obras importantes, o concelho está melhor ao nível das infra-estruturas sociais. As principais instituições de solidariedade social surgiram com o acidente. Mas faltam empregos."

Paulo Teixeira, o então presidente da autarquia, sublinha que ficaram por fazer as principais vias de acesso a Santa Maria da Feira e a Penafiel: "A estrada para lá chegar ainda é da monarquia."

Hoje as famílias voltam à margem do rio para se despedir. Vão ser atiradas 59 rosas da nova ponte, pouco antes da missa, na Igreja de Raiva, em memória das vítimas.

Exclusivo i/Semanário Grande Porto

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