Tenho pena. Muita pena mesmo.
E ela também, essa rapariga que um dia saiu de casa, para ir ao contentor despejar o caixote do lixo e de regresso passar na mercearia da esquina para comprar pão, ou fruta, coisa breve, rápida, portanto, num “vou ali e já volto”, disse ela, saíu de casa e foi mesmo só por uns minutos, e nesse entretempo “ele”, esse “ele” que estava com ela em casa, já sentado e distraído a ver notícias ou coisas afins, a ler jornais ou um capítulo de um livro, nesse preciso momento em que ela não estava ali mesmo ao lado, deu-lhe uma coisa, assim um zimbróglio estupefactante agudo e, sem mais nem quê, um pré-aviso de 15 dias, uma carta registada com aviso de recepção, um telegrama, uma sms até, nada, assim num “trau” que lhe caiu em cima (e a ela também) ela apaixonou-se por “ele”.
Apaixonaram-se mesmo, tipo paixão-de-caixão-à-cova, de triplos mortais encarpados que começaram a dar no sofá, com as folhas dos jornais a voarem à volta, concordes supersónicos de papel, a televisão em mira técnica de espanto, os livros abertos nas páginas treze e eles perdidamente apaixonados, naqueles minutos em que o mundo foi todo deles e nada nem ninguém os impediu de lhe dar três voltas a pé se for preciso, para chegarem onde quiseram.
Apaixonou-se, o homem, esse “ele” que até aí estivera lá poisado, e ela, sem saber de nada, nesse momento a receber o troco da nota com que pagara o pão ou a fruta, o lixo já despejado e a voltar devagarinho para casa, para o homem poisado entre o jornal e a televisão, o homem apesar de tudo dela, que as mulheres, as esperas e os xailes roxos de viúvas à beira do pontão são sempre coisas que se coadunam bem em histórias de amor (e esta, não parecendo, também não deixa de o ser).
Apaixonaram-se mesmo, tipo paixão-de-caixão-à-cova, de triplos mortais encarpados que começaram a dar no sofá, com as folhas dos jornais a voarem à volta, concordes supersónicos de papel, a televisão em mira técnica de espanto, os livros abertos nas páginas treze e eles perdidamente apaixonados, naqueles minutos em que o mundo foi todo deles e nada nem ninguém os impediu de lhe dar três voltas a pé se for preciso, para chegarem onde quiseram.
Apaixonou-se, o homem, esse “ele” que até aí estivera lá poisado, e ela, sem saber de nada, nesse momento a receber o troco da nota com que pagara o pão ou a fruta, o lixo já despejado e a voltar devagarinho para casa, para o homem poisado entre o jornal e a televisão, o homem apesar de tudo dela, que as mulheres, as esperas e os xailes roxos de viúvas à beira do pontão são sempre coisas que se coadunam bem em histórias de amor (e esta, não parecendo, também não deixa de o ser).
Não se sabe o que terá acontecido exactamente, apenas umas folhas amarfanhadas no caixote dos papéis para reciclar que por mero acaso se encontraram depois e que pareciam mesmo aviões supersónicos em termo de viagem última, deram alguma indicação vaga; ela lembra-se de ter demorado pouco tempo a regressar, sem pressa na espera, que os homens que são nossos e que poisam vagamente nas costas das cadeiras e nas beiras das mesas e nas guardas das varandas, não deixam de ser nossos mas não é preciso ir a correr, que as mulheres e as esperas sempre se deram bem, desde que as últimas não sejam vãs e que eles, esses homens que nos poisam, voem, quer para longe quer para perto, que precisam disso, mas que voltem sempre à terceira chamada para a mesa, quando a sopa ainda está quente embora já não fumegue.
Ela voltou lentamente para casa, até porque lhe teria parecido ao sair que “ele” precisaria de algum tempo (e sossego) para ler o jornal em paz; sem adivinhar que nesse preciso momento já ele dormitava e sonhava.
E assim, no espaço dos segundos que passam ao largo da rua que ainda estava a atravessar, quando ela meteu a chave à porta já “ele”, o homem poisado, se tinha sacudido num acordar quase em horror:
- Quem, eu? Eu?
Um sonho com uma “escapadela”, um correr atrás de aviões, agora pesados, a tombarem pela sala toda, a juntar tudo no lixo, a esvaziar a água toda, a esfregona a limpar a piscina olímpica já outra vez com dois sofás grandes e uma mesa no meio e um tapete por baixo, ainda um pouco molhado.
Eu tenho pena, nem é tanto por ela que apesar disso ainda espera que um dia os guardanapos de papel voltem a levantar voo com as pás das hélices a rodar; é mais por “ele”, que não se conseguiu aguentar no balanço e agora só quebra recordes de saltos para a água e de apneias em terra, com a falta do ar respirado por ela.
Ela encolheu os ombros, afagou com as mãos o avental roxo e voltou para a cozinha com o pão ainda quente e as maçãs vermelhas e disse-lhe apenas:
- Daqui a dez minutos está a sopa pronta; não vás para muito longe para não arrefecer.
O que lhe aconteceu a ela é o que geralmente acontece a quem tem a estúpida e obstinada mania que as relações amorosas são como as casas. Um dia encontrou-o a “ele”, uma bela pessoa, e depois construiu algo com essa pessoa que a motivou brutalmente e pensavam que tinham ali algo que podia não ter passado, mas estava muito presente e quiseram que fosse alicerce do seu futuro. Portanto puxaram do martelo aqui, sacaram da colher de pedreiro, colocaram os tijolos com argamassa… e pumba! Foram por ali fora amando e construindo, tijolo sobre tijolo com a argamassa mais ou menos consistente ali pelo meio, que de vez em quando distraíam-se com outras coisas e depois deixaram por ali umas falhas de argamassa que na altura até não se deram conta disso, mas depois é que foram elas!
E assim contentes da vida foram por ali fora, sempre a subir em direcção ao tecto e um dia lá consideraram a sua casinha, vidinha conjunta construída e depois deitaram-se à sombra da bananeira, que é como quem diz na caminha, dentro da casinha tão lindinha, e tão aconchegadorazinha, e depois um belo dia, sem darem por nada, ou às vezes até dando por umas infiltraçõezitas e humidades que começaram a deixar manchas nas paredes, as rachinhas a aparecerem no estuque, por aqui e por ali, mas nem ligaram muito porque achavam que a casa era suficientemente sólida para aguentar essas deterioraçõezitas, e coisa e tal… e pumba! Eis senão quando a argamassa se transformou em saliva, e lá veio a casa abaixo, e ela levou com uma catrefada de tijolos nas trombas ou nos cornos, que de repente até se apercebeu que os tinha… e ficou assim a modos que um bocadito amofinada porque aquela cena toda deu uma trabalheira do caraças e assim vir tudo abaixo dum momento para o outro é triste, muito triste, mas é mesmo assim que a vida é.
Depois de levar a colher à boca, “ele” disse:
- A sopa está um bocado insossa!