Conhecido por defender os maus da fita, raramente perde, apesar de passar os julgamentos a desenhar bonequinhos.
Nasceu em Terras de Bouro, estudou em Coimbra, onde foi colega de Alberto João Jardim, e fez-se advogado em Braga. Ao longo da sua carreira teve em mãos alguns dos processos mais mediáticos julgados em Portugal, como das FP-25, Rede Bombista, caso Bolama, Saco Azul de Felgueiras, Portucale e Apito Dourado. Conhecido por defender pessoas condenadas na praça pública, é também dele que depende o futuro do principal arguido do processo Face Oculta, Manuel Godinho.
Apesar do seu mediatismo, mantém um modesto escritório em Braga, onde trabalha com mais três advogados. Em entrevista ao i, Artur Marques recorda o caso Felgueiras e diz nunca ter sabido dos planos de fuga da sua cliente. Um advogado "de província", como costuma dizer.
É conhecido por defender pessoas normalmente julgadas e condenadas na praça pública. Como é estar sempre do lado dos maus da fita?
É algo que faz parte do meu código genético enquanto advogado. Defendo aquilo em que acredito e as causas que me são confiadas, contra tudo e todos. É particularmente estimulante. Ao mesmo tempo, isso remete-me para uma questão tão interessante quanto perturbadora, que é o facto de os julgamentos na praça pública serem preordenados.
Como assim, acha que há intenção de alguém nesse julgamento mediático?
Não sou de teorias conspirativas, mas isto é uma realidade incontornável nos processos-crime. Há, por parte dos órgãos de polícia criminal, do Ministério Público, da acusação em geral, uma dificuldade grande em se precaverem contra a divulgação do segredo de justiça: há casos em que estas instâncias participam claramente, em que existe um conúbio entre alguns órgãos de polícia criminal, agentes do Ministério Público e órgãos de comunicação social no sentido de irem punindo e condenando algumas pessoas que depois, julgadas em condições normais, acabam por ser absolvidas. É uma situação extremamente preocupante e que se repete demasiadas vezes.
Porque acha que isso acontece? Admite que isso possa servir o interesse de alguém?
Admito que haja a politização da justiça na sua componente investigatória e pré-judicial. Os dados são objectivos e vão nesse sentido. Serve interesses políticos claros, mas revela acima de tudo a tentativa de sublimar a incapacidade de investigar a sério, seja ela produto de uma incapacidade pessoal de quem investiga ou da falta de meios. Reconheço que a falta de meios existe, sobretudo no que diz respeito aos crimes de colarinho branco. Mas há uma tentativa de suprir essa falta através da condenação. É uma situação perversa porque distorce a função da justiça e é contrária aos interesses do Estado de direito. Depois há o refluxo: uma má investigação resulta na absolvição. Admito que muitas vezes haja culpados que são absolvidos, e isso é mau para a justiça. Mas é pior que haja inocentes condenados.
Mas também é sabido que a violação do segredo de justiça parte muitas vezes dos advogados.
Recentemente, a Ordem dos Advogados emitiu um comunicado pedindo contenção nas declarações aos jornalistas sobre processos em curso. E isso não deixa de ser preocupante porque revela uma grande insensibilidade relativa a essa componente dos processos, a que é impossível fugir: a comunicação social tem todo o direito de participar na discussão e essa componente faz parte e é essencial na intervenção dos advogados no processo. Não digo que o advogado deva participar na discussão pública do conteúdo dos processos, mas tem de ter alguma intervenção contida no sentido de procurar minorar os estragos que a co- municação social faz na imagem das pessoas.
É possível limpar a imagem de uma pessoa condenada na praça pública?
São estragos irreparáveis. Podia dar-lhe vários exemplos de pessoas que ficaram com nomes completamente destruídos. Alguns dos quais tornaram-se até uma espécie de paradigma da corrupção. E estamos a falar de pessoas que foram absolvidas, que não cometeram crime nenhum, no entanto, continuam condenadas na praça pública. É absolutamente irreparável. Pode-se minorar, mas os danos são irreparáveis. Dou-lhe um exemplo: há agora um certo burburinho em torno de uma acusação feita a um senhor advogado por gravações ilícitas, e toda essa discussão está a ser travada como se o meu cliente tivesse sido condenado, quando na verdade o tribunal o absolveu. Continua a falar-se em corrupção e corruptores quando ele foi declarado inocente. Porquê? Porque a imagem fica danificada para sempre.
Mas relativamente a esse caso, de Ricardo Sá Fernandes, embora se tratasse de uma gravação ilícita, o seu conteúdo não parece deixar grandes dúvidas.
O meu cliente foi absolvido não por falta de provas, mas porque o tribunal considerou que ele não tinha cometido nenhum acto criminoso. Considerou-se que aqueles factos de que estava acusado não eram crime.
Mesmo sendo inequívoca a sugestão de entregar 200 mil euros a um advogado que, por sinal, era irmão de um vereador da CML, onde a empresa de construção de Domingos Névoa tinha interesses?
O que estava ali em causa era a desistência de uma acção judicial. E se as pessoas tiverem a noção de que isso se faz todos os dias, com a presidência e a orientação de um juiz, facilmente percebem que há uma diferença muito grande entre o que é uma negociação legítima e lícita e um acto de corrupção.
Ou seja, em Portugal pagam-se valores desta ordem para travar processos judiciais?
Todos os dias advogados negoceiam em tribunal a desistência de processos a troco de vantagens, de compensações, sejam de que natureza for, nomeadamente de dinheiro. Mas, na nossa óptica nem era isso que estava em causa. Eu estou a dar por bom que o conteúdo da conversa era aquele.
De certa forma, essa condenação pública terá a ver com a ideia de, em Portugal, haver uma certa impunidade com o crime de colarinho branco. Concorda?
Não me parece que exista essa impunidade. O que acontece é que há uma grande incapacidade de investigar este tipo de crime, aliado à formação de pré-juízos e, acima de tudo, ao mau perder da acusação. Não sabem perder com fair play. A partir do momento em que começa a investigar, a acusação não contempla a possibilidade de estar errada. E muitas vezes está.
Acredita sempre na versão dos seus clientes?
Acredito, completamente. A verdade é aquilo que o cliente me diz, mesmo que eu não saiba se o que me diz é verdade ou não. Fui sempre incapaz de retocar ou inventar uma história. Costumo dizer que vendo aquilo que me põem à frente. A minha postura é a mesma de um médico: se me aparece um cliente, eu procuro tratar da história dele do ponto de vista jurídico. E as histórias são aquilo que me contam, eu tenho de partir do princípio que aquilo que me contam é verdade. É extremamente difícil definir a verdade, mas a mentira eu sei o que é. E quando me aparece à frente, normalmente percebo-a.
Nesses casos recusa? Tem alguma espécie de objector de consciência?
Não, não tenho. Nem tenho de fazer algum juízo sobre o meu cliente. Em toda a minha vida apenas uma vez tive de dizer que era incapaz de defender o cliente. Não faz muito tempo. Era um caso de escravatura, em Vila Verde. A história era tão requintadamente maldosa que, quando recebi a acusação, disse logo que era incapaz. Quando me disseram que aquilo podia não ser bem assim, acabei por fazer a defesa e, em tribunal, provou-se que não havia escravatura nenhuma. Os meus clientes foram absolvidos desse crime, tendo sido condenados por maus-tratos.
Mesmo no caso de Fátima Felgueiras nunca chegou a duvidar da sua cliente?
Não, nunca. E o resultado foi o que se viu. Há uma condenação por um crime de abuso de poder, por ter havido um pagamento de 18 mil escudos numa troca de bilhetes de avião, que está impugnada.
Sabia do plano da sua cliente para fugir para o Brasil?
É um episódio que vem sempre à conversa, relativamente ao qual eu tenho duas opiniões: primeiro, não tenho nada a ver com isso, a Dr.a Fátima Felgueiras teve a gentileza de não me prevenir da sua fuga. Soube disso pela comunicação social. O segundo é que eu não faço juízos de valor sobre quem pretende ou não submeter-se voluntariamente a um julgamento, quando se considera inocente. O que tenho é isto: como se viu, a Dr.a Fátima Felgueiras teria cumprido um ou dois anos de prisão preventiva para depois ser absolvida em tribunal. Agora, cada um conclui como achar que deve fazer.
Mas não acha que a fuga abriu um precedente grave na justiça portuguesa?
Sim, mas a nossa Constituição protege--nos contra ordens ilegítimas e constrangimentos abusivos. E uma pessoa que se considera inocente está perante um conflito de deveres, de saber se deve sujeitar-se a uma prisão preventiva. Há ainda um dado importante: a Dr.a Fátima Felgueiras nunca foi notificada de nenhuma decisão à qual tenha desobedecido.
Mas isso foi porque já não estava cá, porque soube antecipadamente que estaria na iminência de ser presa preventivamente.
Sim, ausentou-se antes disso, não se pode dizer que tenha sido fuga. A Dr.a Fátima Felgueiras sempre se considerou inocente e vítima de uma manipulação. Considerava que a prisão preventiva era uma violência a que não se deveria submeter. E, pior, seria uma violência relativamente à qual não podia recorrer. A prisão foi ordenada em segunda instância, pelo Tribunal da Relação, numa circunstância que não admitia recurso. E isto foi de tal forma gravoso que o Código de Processo Penal foi alterado por causa deste caso. Em Portugal usa-se e abusa-se da prisão preventiva. Ao longo do tempo, fui tendo várias situações. Tenho neste momento um cliente nessa situação, contra a qual me tenho rebelado e tentado pôr cobro.
Está a falar de Manuel Godinho, arguido no processo Face Oculta. Considera não existirem fundamentos para que a figura central deste processo esteja em prisão preventiva?
Em Portugal, os pressupostos da prisão preventiva são a perturbação da prova ou a continuação de actividade criminosa. Eu considero que nem um nem outro se verificam. E, embora no nosso país a doença não seja razão suficiente para revogar esta medida de coacção, há relatórios médicos que lhe atestam graves problemas de saúde. Temos um caso semelhante, o do Dr. Oliveira Costa, do processo BPN, que viu a prisão preventiva ser substituída por prisão domiciliária. Acho que temos de interiorizar a ideia que a prisão é a ultima das hipóteses, só se justifica quando nenhuma outra solução serve.
Tem falado com o seu cliente?
Sim, mas não sou muito visita de cadeias. Com os clientes, tenho o contacto estritamente necessário. Neste momento, tenho três arguidos no processo Face Oculta.
Por que razão nenhum dos três presta declarações em tribunal?
Isso tem a ver com a minha concepção da instrução, que considero uma fase inútil, e que só em circunstâncias excepcionais se justifica. Quando o Ministério Público deduz uma acusação, é porque há razões para acusar. A instrução é uma fase intermédia que se destina a evitar que um arguido vá a julgamento, o que quase nunca acontece. Desde logo porque a capacidade de exercer o contraditório por parte do arguido é muito pequena. É uma fase que, na maior parte das vezes, não leva a nada a não ser atrasar os processos, muitas vezes com arguidos presos. Se eu fosse legislador acabava com a instrução. Passava-se do inquérito directamente para o julgamento e acabava-se com a figura do juiz de instrução. É um juiz com uma convivência de tal ordem e tão diária com a acusação que se torna inconveniente.
Como assim, falta-lhe objectividade?
Julgo que se cria uma relação pouco saudável, na qual o juiz tende a valorizar excessivamente a posição da acusação em detrimento da defesa. Isto em termos genéricos. A manter-se a instrução, esta deveria ser presidida por juízes normais.
Mas requereu a instrução dos seus clientes. De alguma forma acreditava que podia evitar o julgamento.
Existindo a instrução eu não posso, por dever de patrocínio, deixar de tentar obter aquilo que conseguiria em julgamento. E, por outro lado, a instrução também se destina a reparar algumas deformidades do processo de natureza estritamente processual, como a incompetência territorial.
Com base na incompetência territorial [segundo a lei portuguesa, havendo crimes praticados em diferentes comarcas, só o tribunal central os pode julgar, o que não aconteceu neste caso], pediu a nulidade de todos os despachos, incluindo a autorização das escutas que levaram o seu cliente à prisão. Acredita que isso o pode libertar, ou que o processo pode voltar à estaca zero, como já disse?
Já não seria a primeira vez que vejo processos serem completamente destruídos por erros que ocorreram durante o inquérito. No caso de Fátima Felgueiras, já estava designado o julgamento quando foi anulada a instrução, e o processo voltou todo atrás por causa de um erro. Considero que, se vier a reconhecer-se que este processo começa a ser tratado por um juiz incompetente do ponto de vista territorial, a lei determina que os actos têm de ser anulados e que a solução correcta seria invalidar tudo o que foi feito. A nossa sociedade não se pode compadecer com a violação do princípio do juiz natural, seja qual for a consequência. Claro que é uma posição radical, há quem pense o contrário, mas estou disposto a discutir isto até ao Tribunal Constitucional.
Como vê a ordem de destruição das escutas que envolvem o primeiro-ministro?
É uma questão que está por encerrar, e que transformou este processo numa enorme trapalhada. É incompreensível que só depois de os arguidos serem acusados se tenha descoberto que afinal haveria algumas escutas que não foram consideradas ou que não tinham sido destruídas. Acho isso absolutamente inacreditável. A partir do momento em que é feita a acusação, o arguido tem acesso a todos os elementos do processo, incluindo as escutas que não foram destruídas. Neste momento está em debate uma ordem do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e um juiz de Instrução Criminal que considera que tem de cumprir a lei, lei que manda a abertura do processo a todos os arguidos. É um processo muito complicado. Uma trapalhada.
Mudando de assunto, é verdade que passa os julgamentos a desenhar bonequinhos num bloco?
Desenho toneladas de bonecos, é a minha forma de me concentrar e de ir registando alguns dos momentos mais intensos do que se passa em tribunal. E identifico cada um deles com o processo em questão. Quando estou numa sala de audiência, raramente escrevo. Curiosamente, quando escrevo, faço-o sempre com a mão esquerda. Uns provérbios ou coisas engraçadas, resultado espontâneo do que está a acontecer. "A sabedoria acontece quando já não preciso dela" [aponta para o seu caderno] É também uma forma de descontrair.
Alguns desses bonecos são depois passados para a tela. Já alguma vez expôs?
Muitos deles são transformados em óleos ou serigrafias. Já expus em vários sítios, mas a partir de certa altura constatei que estava a entrar em terrenos que não eram os meus. A arte é uma coisa demasiado séria para ser levada com amadorismo. Uma coisa é ir fazendo umas pinturas, outra é partilhar os trabalhos, o que implica um grau de exigência que não consigo ter. Por isso deixei de expor.
Numa entrevista disse que cosia os seus processos à mão. Ainda o faz?
Todos os meus processos, quando vão para o arquivo, são cosidos à mão. Neste momento já não sou eu a fazê-lo, mas fui eu que os cosi durante anos. Daí que tenha a possibilidade de num espaço relativamente curto ter dezenas de milhares de processos.
Guarda os seus processos todos?
Só não tenho um, o da Rede Bombista. Emprestei-o a um inspector da Polícia Judiciária, que nunca mo devolveu.
Esse acabou por ser o processo que o lançou como advogado. Porquê a escolha do direito penal?
Havia um professor que me dizia só existirem duas áreas do direito: o penal e o de mercearia. É no penal que se jogam as coisas mais importantes da vida, no que diz respeito à estrutura da sociedade, da vida, da honra; onde se conjugam grandes paixões. A barra é muito exigente e também muito teatralizada. Eu tenho necessidade de intervir e de travar a lide processual ao vivo, coisa que no direito civil não acontece.
Coisa curiosa, para alguém que se diz tímido.
Julgo que isso é característico das pessoas tímidas. No fundo, a barra é uma forma de contornar a minha personalidade doentiamente tímida. Os grandes actores de teatro e cinema são quase todos tímidos, porque reencarnam outras personagens. Eu tenho extrema dificuldade em comunicar a dois, mas uma grande facilidade de comunicar a mil.
Costuma dizer que nunca quis ser mais do que um advogado de província, mas tem quase sempre em mãos processos muito mediáticos. Nunca pensou em mudar-se de Braga para Lisboa, por exemplo?
Sou um advogado de província no sentido mais íntimo do termo. A minha personalidade e modo de vida estão marcados por esta cidade, que para mim funciona como pólo de atracção de estar, viver e permanecer. Tenho processos espalhados por todo o país e regresso sempre a Braga. Chego a exageros, como aconteceu na semana passada, em que tive um julgamento em Silves e fui e vim no mesmo dia. É assim que trabalho, sinto-me um forasteiro fora de Braga. Era incapaz de viver em Lisboa. Ou fora de Braga. No Porto o problema teria sido exactamente o mesmo. A advocacia das grandes cidades tem componentes com as quais não consigo conviver, para vingar precisa de estar integrada em grandes estruturas profissionais. Eu sou um pequeno advogado, faço tudo pelas minhas mãos. É um trabalho muito personalizado e artesanal.
Manter uma estrutura pequena como a sua, com apenas quatro advogados, pode também ser uma forma de controlar tudo.
Tudo o que posso fazer sozinho, faço. E nem sequer peço a colaboração das secretárias. Não gosto de delegar, não por uma questão de controlo mas porque me descontrai fazer coisas mais pequenas, como ir aos correios, coisa que os actuais advogados não fazem, têm uma gestão do tempo muito mais racional.
André Rito, aqui
