terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

AGRESSÕES: HÁ PESSOAS QUE SÃO VÍTIMAS DURANTE MAIS DE 40 ANOS

Entre as vítimas de crime que procuraram a APAV em 2010 40 sofreram agressões ao longo de quatro décadas. O número sobe para 149 nos casos em que a pessoa foi vítima durante mais de 30 anos.

"Já não é a primeira vez que [a minha filha] me bate... E também me fecha no quarto quando não lhe convém que eu esteja à vista quando leva os namorados lá a casa. Estou numa situação de quase miséria, porque todo o dinheiro que tenho é para ajudar a pagar o empréstimo do apartamento da minha filha, que, além disso, também me vendeu o ouro e um relógio que tinha sido do meu pai.
 
Algumas pratas também já foram à vida." Fala Deolinda, 75 anos, mulher e mãe vítima de maus-tratos físicos e psicológicos da própria filha. Só aos 75 percebeu que as histórias de extorsão e de maus-tratos não deviam ser segredo e procurou a APAV. "O problema é que amo a minha filha como uma mãe ama um filho", dizia Deolinda, para justificar o silêncio de décadas. "Não consigo perceber onde errei na educação dela para merecer isto", contava Deolinda, fazendo cair sobre si própria o espectro da culpa. "A minha filha não pode fazer-me isto só porque estou velha", concluía Deolinda, num segundo de coragem e lucidez.

Deolinda não está sozinha. Quarenta pessoas que procuraram a APAV em 2010 foram vítimas de algum crime durante mais de 40 anos. Ao longo de quatro décadas, foram vítimas de agressões e do seu próprio silêncio. Sofreram, mas calaram.

O número sobe para 149 quando se trata de casos em que as agressões se prolongaram por mais de 30 anos: às 40 pessoas que foram vítimas durante mais de quatro décadas juntam-se as 109 que foram vítimas num período entre os 31 e os 40 anos.

Ao todo, nos últimos cinco anos - de 2006 a 2010 - a APAV recebeu 242 pessoas que estavam numa relação de vitimação há mais de 40 anos e 773 que eram vítimas há mais de três décadas.

"São casos de pessoas que passam por um ciclo de violência tão longo que o seu amor-próprio fica totalmente destruído. Isolam-se e acham até muitas vezes que a atitude do outro se justifica. Dependem emocional ou financeiramente da pessoa que as agride ou mantêm-se na relação para proteger alguém, geralmente os filhos", explica Maria de Oliveira, responsável pela campanha da APAV sobre violência contra pessoas idosas.

O que leva uma pessoa a tolerar situações de maus-tratos durante décadas e a fazer uma denúncia na fase final da vida? A resposta pode estar numa "mudança no sistema familiar". "No caso de uma pessoa que é vítima de violência doméstica, por exemplo, há vítimas que só falam quando os filhos saem de casa ou quando os filhos as incentivam a denunciar."

As estatísticas de 2010 sobre pessoas vítimas de crime mostram ainda que em 69% do total dos casos houve vitimação continuada. Só em 9% dos casos o crime foi pontual.

A duração ajuda a explicar não só o tipo de crime, mas também a relação existente entre o autor e a vítima. Se os casos em que a pessoa foi uma vítima pontual apontam para crimes de roubo ou furto fora do ambiente familiar, a vitimação continuada remete, na maior parte das vezes, para casos de violência doméstica e para um autor do crime muito próximo da vítima.
 
Sílvia Caneco, aqui