Votar devia ser simples. Porque o voto é o mínimo denominador da democracia. É um direito que está na base de outros deveres, como pagar impostos, e outras complicações, como as burocracias. Votar costumava ser simples, em Portugal.
Qualquer pessoa que não esteja muito longe da sua juventude recorda com prazer o momento em que se recenseou e recebeu um cartãozinho (cartãozão, por acaso, até era bem grande) com um número marcado à antiga, com um carimbo que o tornava cidadão de pleno direito. E votar era fácil. Lá, nesse cartão, estava a freguesia e o número que nos dava acesso directo a um boletim e a uma urna onde depositar o nosso voto.
Pois esse cartão desapareceu, e com ele o número de eleitor. Pelo menos para quem já tem o moderníssimo cartão do cidadão. O cartão do cidadão cabe em qualquer buraco de carteira onde cabe um cartão de crédito e essa é uma boa medida da modernidade. Mas não tem o número de eleitor. Quer dizer, tem, mas está escondido. Está num chip. Que não pode ser lido a olho nu, mas por um leitor de chips. Ninguém sabe explicar por que é que o número de eleitor não está lá, escarrapachadinho, se por motivos estéticos, se por outros quaisquer motivos ainda mais estapafúrdios.
Num futuro perfeito, nem vamos precisar do número, o cartão do cidadão vai dar-nos acesso a qualquer urna de voto, fornecida que estará esta com um leitor do tal chip que descarrega o nosso voto nas listas nacionais. Nessa altura, votar vai voltar a ser fácil. Muito fácil até. Num dia de praia ou de frio gelado estaremos sempre a tempo de pôr o nosso voto numa espécie de urna de conveniência, a que estiver mais à mão.
Até lá, os nossos sonhos de modernidade vão muito à frente das nossas realidades. E isto podia até ser uma espécie de parábola, daquelas que fazem boas histórias morais. Por enquanto, quem quiser saber o seu novo número de eleitor tem de ir à Internet, ou, se for previdente, mandar um SMS e o seu número aparecerá no visor do seu telemóvel. Ontem, tudo isto falhou para os eleitores incautos ou que não tinham sido avisados de como fazer. E o cartão do cidadão tornou muito mais difícil a tarefa de quem quis ir votar.
Outra curiosidade portuguesa: nestas eleições, quando já havia muitos eleitores com cartão do cidadão, não houve uma gigantesca campanha a explicar a quem já o tinha como poderia votar, e o que devia fazer para não ter dificuldades de última hora... Houve uma campanha, em muitos autocarros e cartazes, com um estilizado PR, fazendo uma mobilização genérica. O que era preciso, desta vez, era uma mobilização específica.
Não parece ter havido, da parte do Estado, nenhum interesse na participação dos cidadãos. Numa altura em que se pede esforços redobrados ao povo para enfrentar uma crise sem precedentes, é louco ou imprevidente o Estado que aliena a participação ordeira desse povo, votando calmamente em eleições. Quem despreza essa participação que ajuda a aliviar a pressão, bem pode esperar que o descontentamento rebente de outra forma. Que pode ser bem mais violenta.
Catarina Carvalho, aqui