domingo, 23 de janeiro de 2011

MÃES NA PRISÃO. CORTAR O CORDÃO UMBILICAL COM ATACADORES DE BOTAS

"Foi logo de manhã, ela começou o trabalho de parto muito cedo. Foi muito rápido, nem deu para pensar. Deitámo-la na cama, tirámos a roupa e o bebé começou a sair."

Fátima Viana é uma das guardas prisionais da Casa das Mães, a ala reservada a todas presas que estão grávidas e às mães e aos bebés no Estabelecimento Prisional de Tires. A Casa das Mães foi inaugurada há dez anos, mas um dos momentos mais marcantes passou-se há quatro, quando uma mulher holandesa deu à luz dentro da cela. Entrou em Tires já no final da gravidez para cumprir uma pena de tráfico de droga. Poucos dias depois, a filha, Cristell, nasceu e quem fez o parto foram as próprias guardas. "Não tínhamos nada nem sabíamos muito bem o que fazer. Na altura de cortar o cordão umbilical tivemos de tirar os atacadores das botas para apertar o cordão." Aos dois anos Cristell foi para a Holanda, porque a mãe conseguiu a extradição. A criança, que hoje tem seis anos, pode nunca vir a saber que nasceu numa prisão portuguesa, mas em Tires ninguém se esquece. "Era uma menina linda, loirinha. Era muito esperta. Andou aqui até aos dois anos. Gostávamos muito dela", lembra a guarda Viana.

Um ano e meio depois a cena quase se repetia. "Eu já estava a calçar as luvas e pensei: ‘Oh, outra vez!’ Mas depois não foi preciso." Isabel Ferreira, chefe dos guardas da Casa das Mães, recorda o dia em que Sónia quase deu à luz na cela. Em dez anos contam-se pelos dedos as crianças que nasceram ali, no meio de uma encruzilhada de celas disfarçadas de quartos. Mas sempre que uma grávida começa as contracções a Casa das Mães é transfigurada pelas correrias, pelo stresse, pelos gritos e pelas lágrimas.

Sónia Brito, 32 anos/10 anos de prisão, 3 filhos
"Estava aqui presa com o meu filho Marquinho e o Martim quase a nascer. Ainda me lembro, comecei a sentir contracções às 11 da manhã, mas só disse à D. Isabel Ferreira às cinco da tarde." Sónia não queria abandonar Tires sem ter a certeza que o filho Marco ficava ao cuidado da sua mãe adoptiva. Era a primeira vez que Marco, então com 15 meses, ia sair de Tires para casa da avó, enquanto Sónia ficava no hospital. "Não vinha a autorização da comissão de menores. Eu aqui com um no braço e o outro a nascer", recorda. Sónia ainda se lembra das contracções fortes, que "duravam cerca de 40 segundos", mas nem isso a demoveu. "Não queria deixar o Marco sozinho." A autorização chegou por volta das 17 e depois foi só correr. "Chamem a ambulância, chamem o helicóptero que eu estou em trabalho de parto desde as 11", recorda. "A D Isabel já estava a calçar as luvas, eu não aguentava as dores. Quando chegou a ambulância estava com quatro dedos de dilatação."

Depois de três dias no hospital, Sónia regressou à Casa das Mães já com Martim ao colo. O Marco também voltou àquela que era a sua casa. Hoje, passados dois anos e oito meses, Martim anda na creche como todas as crianças da prisão de Tires e o irmão, Marco, foi transferido para a Casa das Crianças, uma instituição próxima, que recebe as crianças com mais de três anos (idade em que abandonam a cadeia) que não têm para onde ir.

Não tarda muito para os dois irem viver com o tio para Aveiro, cumprindo assim o desejo da mãe. Sónia tem alguns anos de pena para cumprir. Apesar de a nova lei permitir que a criança fique com a mãe até aos cinco, ela não quer. "É muito violento para uma criança, que já é tão esperta, estar aqui presa até aos cinco. O Martim vai começar a desaprender, a andar para trás, e eu não quero", comenta. Em Setembro Sónia pensa pedir transferência para a prisão de Santa Cruz do Bispo, para ficar mais perto da família e do novo namorado.

Chegou a Tires há cerca de quatro anos e não foi bem aceite pelas companheiras. Na prisão todos sabem, inclusive o filho mais velho, que vive com a avó adoptiva, que Sónia foi condenada por homicídio do marido. Criou-se mal-estar no curso de culinária, que frequenta com mais seis reclusas. "Foi muito difícil conseguir um bom ambiente no curso. A Sónia até pediu para sair, as colegas não aceitavam o crime", disse ao i a adjunta da direcção. Sobre os motivos, Sónia apenas frisa que era "vítima de violência doméstica". "Não consegui provar que foi em legítima defesa, mas consegui provar que não foi premeditado. O meu filho mais velho, Ricardo, também sofreu na pele as agressões, mas é um assunto de que me custa muito falar."

Quando tinha oito anos perdeu a mãe e foi para o Instituto Monsenhor Airosa, em Braga, como determinou a "mãe do coração" – como ela própria lhe chama. "Era um colégio de freiras. Aos 18, quando saí, quis viver a vida toda de uma vez. Vim para Lisboa, tinha aquele sonho da capital. Envolvi-me com uma pessoa, mas não sabia o que era uma pílula nem um preservativo e fiquei grávida logo da primeira vez." Já em Lisboa, nos dois primeiros anos, Ricardo viveu com a mãe e o pai. Mas o casamento acabou logo a seguir e ficou a viver com a "avó do coração", também na capital. Sónia entrou na vida nocturna, era bailarina striper. "Fui criada para ser religiosa, mas não tinha vocação para aquilo. Fiquei desesperada, não tinha trabalho, e o meu primeiro casamento não durou nem dois anos. Ser striper foi uma maneira de arranjar dinheiro com mais facilidade", realça. Ganhava entre 80 e 100 euros por noite, mais a comissão das bebidas. Durante a conversa com o i, dentro de uma cela fria, com o Sol quase a pôr-se, a ex-striper relatou a experiência. Trabalhou em várias boates e discotecas e envolvia-se sexualmente com homens para ganhar dinheiro. "Sempre trabalhei sozinha, nunca tive nenhum chulo. Só ia para a cama se me sentisse atraída pela pessoa", frisa. As oportunidades de viajar foram a parte boa. Nos anos áureos envolveu-se com outro homem, mas nunca largou o strip. "Cheguei a ter um relacionamento durante seis anos, mas não vivíamos juntos. Ele respeitava o meu trabalho. Era e é gerente de uma das casas de strip mais antigas de Lisboa. Fomos colegas, namorados, companheiros e agora somos amigos."

Os anos foram passando e "uma striper é como um jogador de futebol", não dura sempre. O caché diminuiu para 50 ou 60 euros e em mais uma noite de trabalho Sónia conheceu aquele que viria a ser o seu segundo marido, e que ela viria mais tarde a matar. "Ele era mais velho, tinha 51 anos. Sempre me dei com homens mais velhos [sorri]." No entanto, a maturidade resolveu um problema, mas trouxe outro ainda maior. A relação começou mal, sem ela própria se aperceber. "Ele era viúvo, disse-me que não tinha filhos. Eu decidi que estava na altura de dar um irmão ao Ricardo e construir uma família." Quando estava noiva, Sónia descobriu que afinal o homem maduro, que lhe dizia ser inspector da Polícia Judiciária, tinha seis filhos, da idade dela, e era taxista. "Quando há mentira numa relação, as coisas não acabam bem", comentou, com um aceno pesaroso. Depois de ter assassinado o marido, Sónia entrou em Tires sem saber que estava grávida do terceiro filho. Entretanto já passaram quatro anos. E quando foi mãe na prisão Sónia voltou a acreditar e a dedicar-se à religião.

"Eu já era religiosa, mas depois deixei de o ser. Tinha consciência de que a vida que levava não o permitia. Então ia andar ali a bater no peito e depois à noite despia-me? Isso não é assim. Nunca entrei numa igreja durante todo aquele tempo. Não era digna. Aqui voltei a fazê-lo, sou sacristã na missa de sábado (na igreja da cadeia de Tires) e em Maio vou consagrar-me a Nossa Senhora." Quando não está na igreja nem no curso de culinária ou com o filho Martim, Sónia dedica-se à leitura de livros de poesia e filosofia e a escrever cartas ao novo namorado. Quando sair pensa dedicar-se ao estudo da Filosofia e da Psicologia, a dar aulas de piano, e ao novo amor. Que é quem escreve poesia e lhe envia os livros. "A má vida acabou, a noite acabou, eu não sou carne para canhão. Gostava de dar a mim mesma uma oportunidade de ser feliz."

Ana Sofia, 21 anos/1 mês e meio de prisão, 2 filhos
Está presa há duas semanas em Santa Cruz do Bispo com a filha Luana, de quatro meses. Contou ao i que foi apanhada a conduzir sem carta, mas a história depressa se revelou mais complicada. "Era ele", referia-se ao ex-namorado, "que todos os dias se embebedava e me obrigava a ir buscá--lo de carro. Se não fosse, batia-me", conta. Ana Sofia é do Barreiro, mas mudou-se para o Norte há cinco anos, quando conheceu o ex-namorado e pai do primeiro filho, que era de Paredes. "Conheci-o aos 15 anos e como não tinha pais vim viver com ele." Ana engravidou aos 18 anos, mas não tinha dinheiro para sustentar o filho, porque o ex-namorado lhe tirava todo o dinheiro para "álcool e droga". "Eram os vizinhos que me emprestavam para comprar o leite do Daniel." Dos cerca de 500 euros que Ana recebia do rendimento social de inserção não sobrava nada para comida. "Comíamos pão e água todos os dias. Uma vez até comprei uma carne no Modelo. Custou cinco euros. Quando cheguei a casa ele viu o talão e obrigou-me a voltar lá e pedir o dinheiro. ‘Tu estás maluca, gastar esse dinheiro todo em carne? Eu preciso disso prà droga!"

Apesar das agressões que sofria todos os dias, e mesmo com a ajuda dos vizinhos, só ao fim de cinco anos Ana Sofia conseguiu sair de casa. O filho, Daniel, já estava institucionalizado e, apesar das tentativas, o tribunal determinou recentemente a perda da guarda dos pais. "Todos os dias ligo para o lar onde ele está, mas não me deixam falar. Amanhã ele faz anos, queria mandar-lhe um bolo, mas nem isso vou poder fazer", lamenta-se, a olhar para uma foto do filho. Apesar de saber que ele será adoptado, Ana ainda tem esperança que um dia o Daniel vá procurá-la.

Há duas semanas a viver na prisão, a mãe de Luana nunca a solta da mão. "Estou sempre com a menina ao colo, agarrada a ela, porque agora também tenho medo de a perder." Quando sair, daqui a um mês, Ana vai voltar a viver em Freamunde com o namorado (pai de Luana), a "cunhada" e a sobrinha. "Estou muito melhor com este rapaz. Ele não me bate, dá-me carinhos. A única coisa que me falta é o meu filho."

Elisabete Marques, 38 anos/5 anos de prisão, 5 filhos
Presa pela segunda vez, esta é também a segunda vez que Elisabete será mãe na prisão. Engravidou do sexto filho durante uma das visitas a casa – permitida por estar em regime aberto. Há 14 anos, quando estava grávida da terceira filha, Elisabete foi para Tires cumprir uma pena de três anos por tráfico de droga. "A Daniela nasceu lá, dormia comigo na cela, levava-a para a creche. Quando ela voltava ao fim do dia era a minha companhia, depois teve de se ir embora. A minha irmã veio buscá-la e a minha cela ficou vazia. Uma criança na prisão é a nossa única companhia." Daniela ainda hoje vive com a tia e longe dos irmãos. Dois dos cinco filhos vivem com o pai (o primeiro marido) e os dois mais novos vivem com o actual marido. A cada três meses Elisabete passa alguns dias em casa e a família junta-se toda. "É a minha maior alegria."

Quando saiu de Tires, Elisabete foi trabalhar para um restaurante. A vida corria bem, mas em 2000 o marido também foi preso, por furto, e ela voltou a ceder ao tráfico. "Já tinha as pessoas certas e voltei a traficar. Quem vende é mais viciado que quem fuma. Fui detida novamente em 2006." Agora em Santa Cruz do Bispo, mais perto da família, Elisabete aguarda o nascimento do Rodrigo. Grávida de sete meses, garante que nunca mais volta para a prisão. "Da outra vez o que mais me custou foi ter de me separar da Daniela. Agora vou poder sair com o Rodrigo, porque a pena termina em Agosto", lembra.

Dilva Ferreira, 27 anos/ 6 anos de prisão, 1 filho
A pena de Dilva também foi por tráfico. "Fui fazer de pombo correio e apanharam--me em Madrid." Dilva tinha 23 anos, vivia em Queluz e trabalhava num call center. Era um trabalho temporário e quando ficou sem emprego ficou sem saber o que fazer. "Aliciaram-me numa discoteca em Lisboa. A primeira vez disse que estava fora, mas depois fiquei aflita. Como fiquei com o contacto da pessoa, liguei." Prometeram-lhe 5 mil euros para transportar dois quilos de haxixe de Dakar até Lisboa. "Fiz escala em Madrid, no aeroporto de Barajas. Levava dois pacotes colados nas canelas. Estava em pânico, mas não detectaram nada. Já estava lá fora, ia entrar para o táxi e um polícia aproximou-se e disse o meu nome completo." Dilva foi julgada e condenada em Espanha a nove anos de prisão. A advogada ainda conseguiu a redução da pena para seis e ao fim de dois anos foi extraditada para Portugal.

Dilva sabia os riscos que corria, mas não imaginava que a denunciassem, nem que estaria grávida de cinco meses. "Nos primeiros meses estive sozinha, tinha vergonha de ligar à minha família. Nem o meu namorado sabia que estava grávida, porque estávamos chateados. Mas havia lá um padre que costumava ir à prisão e era português. Ele ligou à minha mãe, que veio da Guiné a Madrid." Durante dois anos a mãe ficou em Espanha. "Esteve sempre a apoiar--me, assistiu ao parto e todas as semanas ia visitar-me." O pai, que vivia em Portugal, também a visitava, duas vezes por mês.

A Aline nasceu em Madrid, mas agora vive "no quarto" mais cor-de-rosa da prisão de Tires. "Ela diz que esta é a nossa casa. Pensa que somos todos uma família e sempre que vai à rua diz: ‘Mãe, quero voltar para a tua casa.’" Em Março Aline vai conhecer uma nova casa, mas para Dilva a melhor notícia é que vai poder sair com a filha. "Ela tem três anos e seis meses e por isso já devia ter saído. Mas como em Março vou poder sair em condicional é uma oportunidade para sairmos juntas." Daqui a dois anos, quando Dilva se vir livre da pena, pensa viver na Guiné, onde está a mãe e para onde irá o namorado, o pai da Aline, que agora trabalha na Áustria. "Quero uma vida calma, sem stresse. Se pudesse, no dia em que saísse ia para a Guiné. As minhas irmãs estão a estudar em Cuba e quando terminarem voltam." Até lá espera esquecer o nascimento da primeira filha, na prisão. "Quando estava em Espanha chorei muito. Pensava: ‘Quando nasci tive toda a minha liberdade e agora não posso dar isso à minha primeira filha.’"

Alice Barros, 36 anos/ prisão preventiva, 2 filhos
"Sou hipertensa e diabética." Alice comentava os motivos de o filho ter nascido prematuramente. Durante o almoço no refeitório nunca largou o Jorge, que nasceu de apenas seis meses. Alice, de Cabo Verde, também foi presa por tráfico de droga, mas sabia que estava grávida. Factor que não pesou na decisão. "Pensei exactamente o contrário. Como estou grávida vou ter sorte." Alice estava na Guarda, na rua, e aproximava-se do local onde ia entregar a droga mas foi detida pela PJ, que há dois anos investigava a rede. Há nove meses que está em preventiva, mas como estava grávida foi logo encaminhada para a Casa das Mães.

O namorado, que é russo mas vive em Portugal, não sabia de nada. "Foi um choque. Eu fiz tudo nas costas do gajo, mas foi a primeira vez." Apesar das dificuldades sentidas pelo nascimento prematuro do filho, Alice não vê com maus olhos os primeiros meses na prisão. "Era muito protegida. Cresci numa instituição e aos 19 anos fui violada. Por isso sempre tive pouco amor-próprio. Ia-me abaixo com facilidade, mas as pessoas tentavam sempre proteger-me e ajudar-me. Desde que estou aqui percebi que afinal há muitas pessoas que têm problemas."

Cláudia Garcia, aqui