sábado, 18 de dezembro de 2010

O ROUPEIRO DA SELECÇÃO NACIONAL

Equipamento, meias, cuecas. Toda a roupa da equipa das quinas foi gerida 33 anos por António Gonçalves.

A conversa de duas horas e meia decorre de pé: é o vício de assistir aos jogos de futebol. António Gonçalves, 62 anos, fica arrumado ao canto de uma enorme estante cheia de camisolas de Ronaldo, Postiga, Moutinho, Coentrão.

Só ele sabe de cor que Liedson veste o tamanho ‘S’; Raul Meireles ‘M’; Hugo Almeida, Rui Patrício, Eduardo, ‘L’; e que Carlos Martins usa camisola ‘M’ e calções ‘XL’ – "porque gosta de se sentir à-vontade a jogar", explica o antigo roupeiro da Selecção Nacional.

Se há 33 anos lhe dissessem que ia ter esta profissão, não acreditava. Resolvido na vida, aos 14 comunicou ao pai que não queria estudar, ia ser mecânico de automóveis – e foi mesmo, até aos 29 anos, quando o cunhado lhe abriu esta porta. Tantas vivências no futebol português, porém, fecha-se em copas sobre o ambiente nos balneários – onde era "o primeiro a entrar e o último a sair" –, episódios dos estágios, mundiais e europeus.

"Não sou nenhum contador de histórias", responde em desarme. Mas neste dia, ao lembrar-se do seu último jogo (antes da reforma), as lágrimas descem-lhe pelo rosto. Conta: "O Ronaldo é uma pessoa humilde, trabalhadora. Quer bater todos os recordes. E acho bem. A última história com ele, tinha eu saído da cabina do Estádio da Luz [no final do Portugal-Espanha, a 17 de Novembro], abraçámo-nos e disse-lhe: ‘Vou-me embora, mas quero que sejas outra vez o melhor jogador do Mundo’".

MAKUKULA SEM CAMISOLA
A propósito deste jogo particular, em que Portugal bateu a Espanha por 4-0, Carlos Godinho, director desportivo da Selecção, confessa a sua superstição futebolística: "Eu disse ao Gonçalves, antes do jogo, que não queria que jogássemos com calções verdes. Foi com eles que perdemos contra a Noruega. Ele ficou um pouco embaraçado, mas jogámos com os brancos".

Não era a primeira vez que António Gonçalves mudava à última hora o equipamento por razões que a própria razão desconhece. "Com o equipamento preto perdemos uma vez contra a Polónia e eu disse que nunca mais íamos jogar com ele num jogo oficial" – conta Godinho. "Era o preferido de todos, mas só trazia desgraças. E contra a Dinamarca jogámos todos de vermelho porque foi o equipamento usado na vitória [7-0] contra a Coreia do Norte".

Não foi só a vitória contra a selecção campeã do Mundo que emocionou o roupeiro. António Gonçalves acredita na nossa Selecção. "Conforme a gente tem jogado nos últimos jogos, vamos a qualquer parte do Mundo", diz aquele que era o elemento mais antigo da comitiva. "Paulo Bento é um homem com ‘h’ grande. Sabe o que quer. Sobre Carlos Queiroz não sei de nada. Via-o como um treinador, mais nada".

A tarefa de gerir o que está para lá dos relvados é silenciosa. Em Outubro de 2007, Makukula – que esteve para não jogar – foi decisivo na partida contra o Cazaquistão, abrindo a porta ao Europeu do ano seguinte. Scolari convocou-o à última hora mas, já com a Selecção Nacional no Cazaquistão, faltava uma camisola personalizada para o número 38. Ao passo que Makukula interrompia as miniférias na Bélgica – rumando a Almaty – a comitiva nacional telefonava para Lisboa, às três da manhã, para que alguém providenciasse uma camisola para o avançado. E, no dia seguinte, uns jornalistas levaram-na.

Outro caso aconteceu quando estava para começar a meia-final do Campeonato da Europa de juniores, em 1990. Portugal entrou no campo adversário de vermelho. Era a mesma cor empossada pelos espanhóis. À saída da cabina a situação quase que gerou um conflito. Só que, de facto, os espanhóis estavam a usar, deliberadamente – para irritar –, o equipamento errado. No final, o resultado ditou a superioridade das Quinas.

João Vieira Pinto é dessa época. O jogador campeão mundial de sub-20, em 1989 e 91, conheceu Gonçalves aos 15 anos. "Eu era capitão de equipa e ele era muito rigoroso com o material de jogo". Aliás, já vinha de longe a fama de que o técnico de equipamentos controlava tudo e não dava uma meia a mais a quem quer que fosse. "Às vezes carregávamos as malas. Até faz parte da educação das camadas jovens, para olharmos uns para os outros como iguais".

As malas eram ainda de tecido e estavam sempre a romper-se. "Cosi-as eu", recorda Gonçalves. Só depois foram substituídas pelas de alumínio, que são mais resistentes. Quando a comitiva vai jogar fora, transporta – em camião TIR, na Europa – cerca de três toneladas de material por jogo. Para o Mundial da África do Sul, levaram (de navio) 12 toneladas. "Tínhamos muita polícia mas foi quando sentimos maior ameaça de roubo", conta o roupeiro.

ÁLCOOL E PROSTITUIÇÃO
António reconhece que as histórias do passado já não se repetem. "Nos anos 80 e 90 falava-se de prostituição nos hotéis onde estava a Selecção. Como e onde, não sei. Agora é muito difícil porque a segurança está lá nos corredores". Até os excessos de álcool diminuíram. "Nos jogos do dia-a-dia que vencemos, não se vai abrir champanhe na cabina, nem no hotel, bebe-se um copo de vinho à refeição".

Tudo mudou. "A primeira vez que trabalhei com a Selecção A perguntei ao meu colega: ‘Quais são as medidas de equipamento que tens para cada jogador?’ E ele respondeu-me: ‘Tens aí esses todos, leva que eles lá escolhem’. A partir daí, tive que me organizar. Hoje, sei as medidas deles quase todos".

O topo é a Selecção A. "Quem tem roupa sempre nova são eles. Para todos os jogos; para os treinos não: é o material que vem para duas épocas", explica António Gonçalves. "O material que ainda está em condições vai para os sub-21, daí para os sub-20 e por aí. Roupa usada [menos meias, cuecas e camisola interior]. Não temos fábrica".

Pauleta recorda: "A gente ria-se muito com o ‘cabeçudo’ – é a alcunha carinhosa dele: marcava o nosso nome nos ténis, nos quispos, nos fatos de treino, para ter o material todo contabilizado. No jogo de despedida, dissemos-lhe: ‘Agora já podes vender as coisas que roubaste para o teu armazém’. Ele odiava que lhe dissessem isso".

EX-JOGADOR DO SPORTING
António Gonçalves, que jogou futebol nas camadas juvenis do Sporting – com Vítor Damas, ‘Caló’, Carlos Pereira, Porfírio – tinha especial estima pelo guarda-redes Manuel Bento. Foi ele o único jogador que lhe deu a sua camisola.

Além de amigo de Pauleta e de João Pinto, Luís Figo convida-o sempre para marcar as camisolas dos jogadores quando organiza jogos de solidariedade. Outro: "O Paulo Futre quando me vê, beija-me". Mas histórias sobre os momentos que partilharam, Gonçalves não conta.

Recorda sim o insólito Mundial do México de 1986: "Tínhamos o patrocínio da Cristal [cerveja]. Como as marcas não pagavam o patrocínio das botas, tapávamos a marca com graxa. Umas eu, outras os jogadores".

E se nunca teve grandes problemas com a bagagem no aeroporto, o ex-dirigente da Federação Portuguesa de Futebol César Carvalheira não teve a mesma sorte: "Quando fomos para a Austrália, ele foi obrigado a deixar no aeroporto o presunto e a faca que levava na mala".

Mas o episódio mais caricato na carreira de António Gonçalves – que foi aos mundiais de 1986, 2002, 2006 e 2010 e aos europeus de 1984, 1996, 2000, 2004 e 2008, aconteceu com Scolari, durante o estágio para o Euro 2004. "Fui dar com ele a lavar as calças de fato de treino e a pendurá-las. Tinha ido caminhar e sujou as calças. Para não as trocar, estava a lavá-las. Não digo mais nada acerca dele".

Foi no desfecho do Euro 2004 que o técnico de equipamento chorou como a comitiva por não termos sido campeões. "Guardo essa imagem na memória". E para sempre ficam anos de trabalho, pagos com 1297,12 euros brutos de ordenado.

"Quando me despedi disse ao Moutinho, ao João Pereira, ao Veloso – que começaram comigo nos sub-15: ‘Trabalhem que o futuro está nas vossas vistas’. Tive sempre uma palavra para eles não se perderem – e já não se perdem, estão bem na vida". São parte da nossa Selecção.

Bruno Contreiras Mateusaqui