quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A OUTRA PROFISSÃO MAIS AMARGA DO MUNDO: BURLÃO

Já ouviu falar da burla dos cinco dígitos, do esquema da herança ou da burla dos cães? São contos do-vigário modernos.

Só este ano já houve 2135 crimes de burla registados pela PSP. Entre PSP e GNR registaram-se 39 detidos. Os chamados contos-do-vigário abundam aos milhares por todo o País e as vítimas são as pessoas mais fragilizadas, sobretudo idosos. As polícias multiplicam-se em acções de prevenção, mas os burlões não param de inovar. É um crime difícil de combater, até porque a sua moldura penal não permite aplicar prisão preventiva.

A mais recente vigarice na área metropolitana de Lisboa é a "burla dos cinco dígitos", como é conhecida no meio policial. São dois burlões a operar com o mesmo conto-do-vigário no primeiro semestre deste ano . Os lucros ascendem a largos milhares de euros.

Na cidade de Lisboa, houve mais de cem denúncias nos últimos seis meses. O suspeito está identificado e a ser investigado pela PSP: tem 45 a 55 anos, é alto, magro, bem vestido e apresenta-se às vítimas, quase sempre idosos, como funcionário da Caixa Geral de Depósitos (CGD).

O burlão explica aos ingénuos que a CGD está a proceder a uma alteração dos códigos multibanco para os cartões de débito, os quais - diz ele - passaram a ter cinco dígitos em vez dos actuais quatro.

As vítimas, idosas na maioria, fragilizadas, acreditam na lábia do senhor funcionário. Prestimoso, o burlão oferece-se para acompanhar os "clientes" a uma ATM. Nada como uma demonstração de como se altera o código.

Já na ATM, o burlão finge fazer a alteração para os cinco dígitos e depois entrega um cartão à vítima que já não é o dela mas um dos vários que ele guarda consigo. Há casos de pagamentos de contas com os cartões das vítimas em estabelecimentos comerciais a ultrapassarem os largos milhares de euros. Só de uma vez, numa loja de electrodomésticos, foram pagos 25 mil euros pelo mesmo artigo (repetido na factura), um LCD.

A mesma burla na outra Margem.
Na Margem Sul, a actuar sobretudo em Almada, está identificado um homem com um perfil muito semelhante ao burlão de Lisboa. Há registo de pelo menos seis denúncias nos últimos seis meses na zona de Almada. Também já está identificado e a ser investigado pela PSP de Almada. Só no primeiro semestre deste ano já houve 20 burlões detidos pela GNR e 10 pela PSP.

Tão antigo como a prostituição.
O "conto-do-vigário é tão antigo no mundo como a prostituição", afirma o capitão Cupeto, responsável pela área dos Programas Especiais da GNR (Escola Segura, Idosos em Segurança e outros). Durante oito anos, o capitão Cupeto comandou o destacamento de Évora e deu formação a idosos para aprenderem a evitar os vígaros profissionais.

O que marcou mais a carreira do capitão foi o burlão dos brindes publicitários, um homem de 35 anos que "atacava sobretudo cabeleireiras". Modus operandi: chegava aos salões, bem vestido e bem falante, e mostrava um catálogo de brindes - sacos de plástico, guarda-chuvas e canetas, em que podiam inscrever o logótipo do salão. As vítimas faziam encomendas pagando de antemão valores entre os 75 e os 300 euros e o vendedor passava-lhes uma factura em nome da sua empresa fictícia.

Este burlão, que já tinha antecedentes criminais, actuou de norte a sul do País (Guimarães, Gondomar, Porto, Margem Sul, Faro) tendo lesado "centenas de pessoas". Chegou a envolver-se romanticamente com uma cabeleireira e acabou por fugir e levar-lhe o carro. Numa única localidade burlou quatro comerciantes.

Foi detido em 2005 pelo capitão Cupeto, em Santiago do Cacém, mas não ficou em prisão preventiva porque o juiz não viu indícios de burla qualificada, apenas de burla simples. "Os juízes julgam como casos isolados. E por burla simples ninguém fica em preventiva. Era preciso provar que é uma prática reiterada e que faz disso o seu único modo de vida, o que é complicado", sublinha o capitão Cupeto.

No dia da detenção do "artista" dos brindes, e após ser liberto pelo juiz, o capitão Cupeto deixou o vígaro na Rodoviária Nacional, em Santiago do Cacém. "Ainda me pediu dinheiro para o bilhete. Claro que não lhe dei. Aquele conseguia vender um frigorífico a um esquimó!"

Este burlão ainda não foi a julgamento e já passaram cinco anos.

A burla dos cães.
Todos os dias Vítor Hugo comprava os jornais e procurava os anúncios colocados por donos de animais domésticos desesperados com a perda do cão ou do gato e dispostos a oferecer recompensa. O vigarista escolhia as vítimas pelos anúncios e depois ligava-lhes. Dizia ter encontrado o cão ou o gato numa determinada rua (que escolhia de acordo com o local onde desapareceu o animal). Alegava já ter tido despesas com o animal, a nível de alimentação, vacinas e outras e reclamava esse pagamento antes da entrega do animal. Os gastos que alegava ter feito eram sempre até cem euros. Facultava um NIB (Número de Identificação Bancária) e a vítima pagava. Depois o vígaro já não ia ao encontro da pessoa nem nunca mais atendia o telefone.

Só num ano, em 2005, a PSP de Lisboa recebeu mais de cem queixas, mas o vigarista punha em prática o esquema com residentes de várias cidades do País.

Usurpava cartões de telemóvel.
Às operadoras móveis o cliente Vítor Hugo dava sempre a morada Rua das Flores. O que variava era a cidade (Lisboa, Faro, entre outras). Não comprava cartões de telemóvel, até nisso tinha um "esquema", contou ao DN fonte policial. Telefonava para um titular de um número e fazia-se passar por funcionário da TMN para pedir o código do carregamento do cartão a pretexto de uma anomalia. Entrava depois numa loja da operadora com o código do cartão e pedia a 2.ª via do cartão. Usurpava o cartão e ficava com o saldo do cliente lesado.

Pelo NIB que o indivíduo forneceu aos proprietários de animais perdidos, a PSP de Lisboa investigou-lhe o rasto e chegou a Vítor Hugo. Agentes da PSP foram ter com o burlão ao local onde morava, a Praia da Areia Branca (Peniche).

Foi detido e constituído arguido. Interrogado sobre os mais de cem inquéritos que já corriam contra si, só na Grande Lisboa, Vítor Hugo confessou os factos. "Nunca pensei que alguém se queixasse por uns meros cem euros!", disse ele aos agentes.  Segundo fonte policial, continuou a fazer burlas durante muito tempo após esta detenção.

Mais de 1200 inquéritos na PJ.
Na Directoria de Lisboa da PJ, Rita Vieira é a coordenadora da secção de burlas: "Temos para cima de 600 inquéritos em curso por burla na PJ de Lisboa. Só no primeiro semestre deste ano já detivemos 20 suspeitos pelo crime de burla, o igual número que tivemos de detidos em todo o ano passado."

Um dos esquemas mais recentes que estão a ser investigados pela sua secção há cerca de cinco meses é a "história da herança". "Temos quatro denúncias que nos chegaram de países como Canadá, Austrália e Alemanha. Receberam e-mails e cartas de uma suposta empresa de advogados que os indicava como os únicos herdeiros de um cidadão português abastado que morreu num acidente de trânsito no Porto. E como o morto não tinha mais parentes era preciso transferir dinheiro para dar início ao processo", conta Rita Vieira. Os queixosos contactaram a Embaixada de Portugal nos seus países e deram a referência do escritório de advogados. A investigação prossegue.

A burla dos investidores.
Outro caso recente que está a ser investigado pela PJ é a burla de uns estrangeiros que se fazem passar por investidores em urbanizações de luxo em Portugal e alegam procurar parceiros de negócio. Garantem ter milhões nos seus países. Já foi lesado um construtor português em 40 mil euros, adiantou a coordenadora Rita Silveira.

Na secção de criminalidade informática da Polícia Judiciária (burlas por via de phishing e cartas da Nigéria, por exemplo) há "mais de 600 inquéritos em curso", segundo disse ao DN o coordenador desta secção, Carlos Cabreiro. O crime informático subiu 70,3% o ano passado.

As burlas abundam aos milhares porque a moldura penal prevista para este tipo de crime é de três anos de prisão ou pena de multa. A pena só aumenta para cinco anos caso se prove que a burla é qualificada e, para isso, é preciso que o prejuízo seja consideravelmente elevado ou que o burlão faça disso modo de vida e a vítima fique em difícil situação económica.

Rute Coelho, aqui