terça-feira, 3 de agosto de 2010

ERA UMA VEZ...

AS CRIANÇAS DA MINA*
(2ª parte)
Um dia, à hora da saída, Louis e Tounet foram atraídos por um relinchar. Um cavalo ia descer ao fundo da mina. Quando se aproximaram dele, reconheceram Tambour, o amigo que os saudava sempre no caminho para a escola.
O palafreneiro estava desesperado:
— O animal está demasiado nervoso. Nunca mais o atamos.
Sem proferir palavra, Tounet ajoelhou-se junto do cavalo e sussurrou-lhe algumas palavras ao ouvido.
Depois de alguns minutos, disse ao palafreneiro:
— Ele já está pronto para descer.
Com efeito, e para surpresa de todos, o animal parara de relinchar e parecia agora calmo. Deixou-se atar sem nervosismo, e em breve descia para o interior do poço, viajando dentro da cabina. Tambour deixava para sempre a superfície. Nunca mais veria a luz do dia…
As semanas passaram e Louis empurrava os vagões cada vez com mais facilidade. Mas era um trabalho muitíssimo duro: doíam-lhe as pernas, os braços e as costas, e o medo do grisu nunca o largava. Quando não conseguia reprimir mais as lágrimas, escondia-se para que não o vissem chorar.
Tounet tinha trocado Apolo por Tambour. Era a única pessoa que conseguia fazê-lo trabalhar. Quando ouviam um pequeno assobio alegre, todos sabiam que Tounet se aproximava com Tambour.
Louis havia também de recuperar o sorriso graças a uma personagem que começou a trabalhar no “Inferno”. Certo dia, diante do seu vagão, apareceu um senhor elegantemente vestido.
— Quem terá tido a ideia de abrir galerias tão estreitas? — exclamou o homem.
Ao ver a criança, perguntou-lhe:
— Será que poderias ajudar-me, meu pequeno?
— Tenho de levar o vagão ao comboio, senhor — respondeu Louis.
— Deixa lá, não é isso que vai parar o trabalho na mina. De qualquer forma, nem sequer deverias estar aqui — continuou o homem.
Convencido, Louis deixou o vagão e ajudou o homem a desenrolar uma corrente estranha.
— Ora bem, onde terei posto o meu lápis? — perguntou-se o estranho.
— Está na sua orelha — reparou o rapaz.
— Está pois. Sou tão distraído — murmurou a personagem.
“Quem será este senhor tão estranho?” perguntava-se Louis.
De repente, ouviu-se um grito:
— Louis, onde estás?
Era Ratel.
— Com que então, escondes-te aí. Vais ver…
Ratel estacou ao avistar o visitante.
— Oh, Senhor Chagnon! Não o tinha visto — desculpou-se, num tom de voz servil.
— Vejo que não — disse, secamente, o homem.
Aproximando-se do encarregado, perguntou:
— Não lhe tinha já dito para parar a exploração deste sector?
— Disse sim, mas eu pensava que…
— Muito bem. Falarei directamente com o administrador.
O homem pegou no saco que tinha posto no chão e pediu a Louis:
— Pega no meu material e segue-me, pequeno.
— E o meu vagão? Quem vai empurrá-lo? — perguntou Ratel.
— Empurre-o você. A partir de agora, esta criança é o meu assistente pessoal.
Virou costas ao encarregado e afastou-se, seguido de Louis. Ratel ficou vermelho de raiva. Uma raiva que não se apagaria…
O Senhor Chagnon era engenheiro agrimensor. O seu trabalho consistia em medir as galerias com precisão, a fim de poder cartografar as minas. Utilizava instrumentos muito engraçados, que Louis estava encarregado de transportar. A criança acompanhava o agrimensor em todas as suas deslocações e ficava a conhecer as galerias.
Um dia, desembocaram numa galeria onde corria um pequeno riacho. Aqui e ali, as ratazanas comiam a madeira do passadiço e os cogumelos que cresciam por todo o lado. Perdido nos seus pensamentos, o Senhor Chagnon não viu os restos de refeição que um roedor acabava de abandonar. O pé escorregou, o homem perdeu o equilíbrio e caiu à água. Felizmente que não se magoou.
— Graças a Deus que a minha lâmpada não se apagou. Seria bem difícil encontrar a saída às escuras.
— Onde vai dar este riacho? — perguntou Louis, enquanto o seu novo chefe tentava secar-se.
— Vai dar a um poço especial: o poço mais baixo da mina. Existem tubos que aspiram a água desse poço para o exterior.
— Porque é preciso mandá-la para o exterior? — continuou Louis.
— Para que a mina não fique inundada em poucos dias.
Embora fosse distraído, o agrimensor conhecia as galerias como ninguém. Numa outra ocasião, o jovem mineiro foi surpreendido por uma corrente de ar.
— Estamos perto de um poço de ventilação — explicou o engenheiro. — Está equipado com um enorme ventilador, que permite renovar o ar da mina e eliminar uma parte do grisu.
Louis pensou que a mina estava cheia de segredos, segredos de que os habitantes da aldeia nem sequer suspeitavam. Mas, apesar de todo o prazer que explorar a mina na companhia do agrimensor lhe dava, ficava sempre contente quando a jornada de trabalho chegava ao fim.
Chegava a invejar as mulheres e crianças que recolhiam alguns restos de carvão nos aterros por detrás da mina. Contudo, mesmo que estas pessoas trabalhassem ao ar livre, estavam longe de ganhar o que ele ganhava como mineiro de fundo. Pensava o mesmo quando via as mulheres encarregadas de retirar os pedaços de rocha misturados com o carvão. Era um trabalho monótono e fatigante, pelo qual eram pagas apenas segundo o número de cestos de pedras que enchiam por dia.
Em redor de um dos pontões, crescia um emaranhado de vias-férreas. O carvão acabado de escolher pelas mulheres era carregado em grandes vagões, que partiam em direcção a Lyon, a Le Puy, e a outros portos do rio Loire. Louis continuava a seguir o engenheiro por todo o lado, dos pontões aos passadiços, dos passadiços ao edifício onde se encontrava o escritório do engenheiro. Depois de ter arrumado o material, o rapaz punha-se a admirar os mapas que estavam nas paredes.
Quando, às vezes, o engenheiro não passava o dia todo no fundo da mina, Louis transportava lâmpadas. Atravessava a mina inteira para trocar lâmpadas acesas por lâmpadas apagadas, melhorando assim o seu conhecimento das galerias.
Louis esperava sempre, com impaciência, a chegada do domingo, o único dia de descanso dos mineiros. Deitado na erva ao lado de Tounet, desfrutava, enfim, do sol. Há mais de três meses que trabalhavam no fundo da mina. A alguns metros deles, o pai de Louis ocupava-se do jardim. Antigo mineiro, sofria de silicose, uma doença dos pulmões que afecta a maioria dos mineiros. Como já não podia trabalhar na mina, ocupava-se da horta para alimentar a família.
Tounet perguntou a Louis:
— Quantos anos vivem os cavalos?
Um pouco surpreendido, Louis pensou por momentos e respondeu:
— Não sei, mas não tantos como as pessoas. Porque perguntas?
— Por nada. Penso que gostaria de passar a vida inteira com o Tambour.
No dia seguinte, regressaram ao trabalho. Mal os dois pequenos mineiros chegaram ao fundo, encontraram Ratel, que saía de uma das galerias. Louis esboçou um sorriso trocista que logo perdeu.
— Vem comigo! — ordenou o encarregado.
— Estou à espera do Senhor Chagnon — resistiu o rapaz.
— Não estou a falar contigo! Estou a falar com ele!
E designou Tounet com o queixo.
— Mas… e o Tambour… — balbuciou Tounet.
Ratel nem o ouvira:
— Como o Senhor Engenheiro me tira o meu pessoal, tenho de recuperá-lo onde posso.
O encarregado pegou no rapaz pelo colarinho e levou-o consigo.
Tounet gritava e chorava:
— Tambour! Quero ver o Tambour!
Louis sentiu-se consternado. Como não podia atacá-lo, Ratel atacava o seu melhor amigo. Quando o Senhor Chagnon chegou, a criança, quase a chorar, contou-lhe o que se passara.
— Ai é assim que ele se comporta? Não te preocupes, hoje à noite falarei com o administrador. O mais provável é que Ratel seja despedido. Tem dado demasiado nas vistas!
Louis ficou mais tranquilo. No dia seguinte, Tounet voltaria para junto do cavalo e ele livrar-se-ia de vez do encarregado. Foi com o coração mais leve que seguiu o engenheiro rumo a uma galeria que uma equipa estava naquele momento a cavar na rocha.
Naquele preciso instante, Ratel colocava Tounet diante de um ventilador manual e mandava-o pôr o maquinismo a trabalhar mais depressa. Com os olhos cheios de lágrimas, o rapazinho começou a dar à manivela. Os mineiros tinham pena dele, mas não ousavam dizer nada, com medo de Ratel.
Louis e o engenheiro tinham acabado de chegar à nova galeria.
— Se os meus cálculos estiverem certos, em breve devemos encontrar carvão — exclamou o agrimensor.
Em seguida desatou a rir, porque se tinha enganado no instrumento que tirara do saco. Louis riu também, sempre admirado com a distracção do homem.
Mas as coisas não estavam a correr bem a Tounet. O cansaço e o desespero consumiam-no. Estava totalmente exausto. Foi então que viu algo que lhe partiu o coração: Tambour estava a ser conduzido por um mineiro e nem reparara nele. O rapaz desatou a soluçar.
Talvez por causa das lágrimas, teve de repente a sensação de que a luz da galeria se esbatera. Tentou regular a chama da sua lâmpada, sem reparar no tom azulado que a chama adquirira. Então, morto de cansaço e esquecido de todas as recomendações que lhe tinham sido feitas vezes sem conta, Tounet levantou a grelha da lâmpada.
É impossível descrever o barulho tremendo e a detonação infernal que se fez sentir por toda a mina. Dentro da nova galeria todos foram projectados ao solo. Depois da surpresa, veio o pânico.
— Temos de evacuar toda a gente! — gritou alguém por entre as nuvens de pó.
Desataram todos a correr em direcção à cabina que os levaria à superfície. Louis ouviu uma discussão entre dois encarregados:
— Alguém apanhou grisu lá para os lados do “Inferno”.
“Grisu? Inferno?”, pensou Louis.
— Tounet! — gritou, espavorido, desatando a correr em direcção ao labirinto mineiro.
Sabia bem por onde ir, pois já lá tinha estado. Reflectia nas direcções a tomar em voz alta, para apaziguar o medo que sentia. De repente, ficou sem fôlego, e sentiu que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Um mineiro acabara de o agarrar pelo pescoço e levava-o de volta para a cabina.
— Deixe-me, deixe-me! Tenho de ir procurar o Tounet!
O mineiro nem lhe prestou atenção. Louis gritou pelo amigo, mas em vão. Na obscuridade da mina, no coração do Inferno, Tounet já não podia ouvi-lo.
O balanço do acidente foi anunciado nessa mesma noite: catorze feridos e seis mortos. Entre os mortos, estava um rapaz chamado Antoine Vallat, que todos conheciam como Tounet. Um cavalo tinha igualmente morrido na mina. As galerias, fragilizadas pela explosão, não demoraram a desmoronar.
No dia seguinte ao drama, Louis voltou ao trabalho na mina. Passaria aí toda a sua vida Atingido pela silicose, como o pai, desceu ao poço pela última vez em 1913, numa cabina instalada no novo poço Couriot. Morreu dois anos mais tarde, a 19 de Maio de 1915.
Foi encontrado deitado na relva, a alguns metros do seu jardim, aquele mesmo onde quarenta anos antes o amigo tinha murmurado:
— Gostaria de passar a vida inteira com o Tambour.

FIM

Fabien Grégoire
Les enfants de la mine
Paris, l’école des loisirs, 2003

(Tradução e adaptação)

*A história “AS CRIANÇAS DA MINA” foi enviada pelo Clube de Contadores de Histórias, nascido em 2006 na Escola Secundária Daniel Faria, em Baltar, no seio do qual foi constituída uma equipa pedagógica, formada por professores de vários grupos disciplinares e provenientes de diversos estabelecimentos de ensino, que tomam a seu cargo a selecção, preparação e difusão de literatura infanto-juvenil.