Estirado na cama de um hospital, aguardando impacientemente a chegada da morte, um velho faz contas à vida.
O corpo, um trapo feito de gente, não o deixa antever, mas a mente do homem é um torvelinho de emoções, acontecimentos e memórias que, no seu conjunto, transformam o pouco que resta da sua vida num exercício mais real do que a existência de muitos seres.
“(...) A vida passa-lhe em bobine, de frente para trás, muito salteada”, começa por narrar Manuel Andrade, num estilo envolvente e sem freio que mantém até às derradeiras páginas, convidando o leitor a embarcar neste “mergulho às vísceras do ser humano”, como escreveu Urbano Tavares Rodrigues na nota introdutória.
E se a escrita sôfrega, não raras vezes torrencial, pode, em muitos casos, significar mero atropelo de ideias, tal a vontade de enlear o leitor na história, há em Três bichos te esperam, quatro te comerão abundantes exemplos do contrário: o autor, um dos mentores do festival literário Escritaria, em Penafiel, sabe perfeitamente o rumo que pretende incutir à narrativa, conseguindo, mesmo ao fim de sucessivas páginas de profundo arrebatamento, retomar o curso exato da história a contar.
Valendo-se da própria experiência como psicólogo clínico que lida com pacientes em estado terminal, Manuel Andrade esmiúça com precisão cirúrgica a matéria de que somos feitos. Interessam-lhe menos as convenções, o socialmente aceite, do que as misérias e contradições humanas, por mais cruas que possam ser. É nesse “lirismo doloroso” a que se refere Urbano que reside a grandeza de um romance que merece ser descoberto por muitos.
(Sérgio Almeida)