a) - Introdução
O atual Governo publicitou, em finais do mês de Setembro de 2011, a sua pretensão de
proceder à reforma da Administração Local, o que fez através da publicação do
chamado “Documento Verde da Reforma da Administração Local” e dos seus Anexos.
A Proposta tem, segundo afirmou aquele Ministro, “cinco objetivos
concretos: promover a coesão territorial e o desenvolvimento local; alargar as
atribuições das freguesias e dos correspondentes recursos; aprofundar e
dignificar a capacidade de intervenção das juntas de freguesia; melhorar os
serviços públicos de proximidade e promover ganhos de escala, eficiência e
massa crítica”
Analisemos, então, a referida Proposta de Lei, apenas nos seus princípios
estruturantes com repercussões mais negativas no município de Oliveira do
Bairro, visto ser exíguo o espaço que nos foi reservado para o efeito, para
concluirmos se a Proposta consegue ou não atingir todos os objetivos anunciados,
ou se não é mais do que um pretexto para dar cumprimento à assinatura do
Memorando de Entendimento rubricado com a denominada “Troika” (União Europeia, BCE e FMI), no âmbito do Plano de
Assistência Económica e Financeira solicitado pelo nosso País.
b) - Análise dos mais relevantes princípios
estruturantes da Proposta de Lei n.º 44/XII
A Proposta começa por estabelecer a obrigatoriedade da reorganização
administrativa do território das freguesias ao mesmo tempo que regula e
incentiva a reorganização administrativa do território dos municípios (ibidem, art.º 1º, n.º 2), permitindo a
fusão destes mas apenas de forma voluntária e não obrigatória como o faz em
relação às freguesias. Daqui, desde logo, resulta um dos principais óbices da nossa
adesão à presente reforma que entendemos ser necessária, já que decorridos que
são cerca de 175 anos após a última grande reforma territorial na nossa
Administração Local, mas não desta forma. É impossível, segundo a nossa
perspetiva, fazer-se uma reforma coerente e que não ponha em causa a coesão
territorial e o desenvolvimento local sem se tocar na definição dos limites dos
municípios e na sua fusão.
A Proposta mantém, nos seus princípios, a classificação dos municípios em
três níveis e de forma muito idêntica ao “Documento Verde”, embora em termos
tecnicamente mais aprimorados. Assim, continua a classificar o município de
Oliveira do Bairro como de nível 3,
por ter população inferior a 25 mil habitantes e com densidade populacional
entre 100 e 500 hab./Km2 (ibidem,
art.º 4º, n.º 2, al.c)).
Como princípios orientadores de integração das novas freguesias, a
Proposta lança mão da ponderação do elemento demográfico e faz uma destrinça
entre freguesias situadas na malha urbana e as restantes freguesias (ibdm, art.ºs 3º, n.º 1, al. f) e 5º,
n.º2), com base nas recomendações internacionais da ONU para os Censos de 2011,
para a distinção entre áreas urbanas e áreas rurais. Assim, considera lugar urbano o que tiver população
igual ou superior a 2000 habitantes, abandonando, assim, o critério abstruso e
absurdo do Instituto Nacional de Estatística (INE) utilizado no “Documento
Verde” para classificar as freguesias em APR,
AMU e APU. A Proposta elenca
os lugares urbanos de cada freguesia, das atualmente existentes, no seu anexo
II, considerando com tal natureza, no município de Oliveira do Bairro, apenas o
lugar sede do município.
A Proposta formula os seguintes parâmetros de agregação: Nos municípios de Nível 3, como é o
município de Oliveira do Bairro, redução, no mínimo, de 50% do número de
freguesias cujo território se situe, total ou parcialmente, no mesmo lugar
urbano ou em lugares urbanos sucessivamente contíguos e de 25% do número das
outras freguesias.
E quem, no procedimento da reorganização administrativa do território das
freguesias, aplica os princípios e os parâmetros da sua agregação enunciados na
Proposta? Responde-nos o seu art.º 10º
” Pronúncia da assembleia municipal
1 - A assembleia municipal, após consulta ou proposta da câmara
municipal, delibera sobre a reorganização administrativa do território das
freguesias, considerando os princípios e os parâmetros de agregação definidos
na presente lei, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 5.º e no n.º
4 do artigo 6.º.
2 - A deliberação a que se refere o número anterior designa-se pronúncia
da assembleia municipal.
3 - As assembleias de freguesia podem apresentar pareceres sobre a
reorganização administrativa territorial autárquica, os quais, quando conformes
com os princípios e os parâmetros definidos no presente diploma, devem ser ponderados
pela assembleia municipal no quadro da preparação da sua pronúncia.
4 - A pronúncia da assembleia municipal deve conter os seguintes
elementos:
a) Identificação
das freguesias consideradas como situadas em lugar urbano, nos termos e para os
efeitos da presente lei;
b) Número de freguesias;
c) Denominação das freguesias;
d) Definição e delimitação dos
limites territoriais de todas as freguesias;
e) Determinação da localização das
sedes das freguesias.
f) Nota justificativa”.
No caso de ausência desta pronúncia das assembleias municipais, compete à
Comissão Técnica enumerada no art.º
12º apresentar à Assembleia da República propostas concretas de reorganização
administrativa do território das freguesias.
Afigura-se-nos ser este, sem dúvida, o ponto mais negativo de toda a
Proposta da reforma apresentada pelo Governo, com repercussões a nível nacional.
Como se pode atingir a tão apregoada coesão territorial e preservar «a
identidade histórica, cultural e social das comunidades locais» (ibdm, art.º. 3.º, n.º 1, al. a)) com a
aplicação destes parâmetros meramente quantitativos de agregação fixados
obrigatoriamente em percentagens ou quotas em relação às freguesias já
existentes? E depois quem os aplica na prática? Os órgãos próprios dos
municípios: a câmara municipal, após
consulta ou proposta e depois a assembleia
municipal através da famigerada pronúncia do art.º 10º, para a qual este
órgão é incompetente, uma vez que o regime de criação, extinção e modificação
territorial das autarquias locais está incluído na reserva absoluta de competência da Assembleia da República (art.º
164º, al. n) da Constituição da República Portuguesa). Assim, esta norma da
Proposta enferma de manifesta inconstitucionalidade material e orgânica,
conforme a seguir iremos demonstrar.
A tudo isto há que acrescentar que está encontrada a forma de ser
desencadeada uma “guerra” desnecessária entre os órgãos autárquicos de cada
município, nos casos em que não houver acordo sobre qual ou quais as freguesias
que devem serem agregadas. Esta é, assim, uma reforma que já foi classificada
por um conhecido comentarista televisivo como a do “vai ou racha” ou de, como afirma o Ministro da tutela: “As freguesias ou caem a bem ou caem a mal”.
O critério apontado poderia ser suficiente para fazer a reforma das
freguesias incluídas na malha urbana,
porque aplicado às freguesias rurais
é um autêntico absurdo. Por isso defendemos: “a ter de fazer-se a reforma
anunciada das freguesias pelas razões economicistas impostas pela “Troika”, ela devia cingir-se apenas às freguesias: das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e às das sedes dos
distritos; nas restantes zonas do País, só a pedido das populações locais,
por aí se não levantarem grandes assimetrias na aplicação dos critérios
quantitativos atrás mencionados. A restante reforma das freguesias deverá ser
diferida no tempo para ser realizada, cuidadosamente, aquando da reforma dos
limites e fusão dos municípios, visto que só, assim, se evitarão as assimetrias
territoriais e se manterá a coesão territorial e se preservará «a identidade
histórica, cultural e social das comunidades locais».
Não admira, assim, que rejeitem a reforma, tal com está delineada, a
Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e a Associação Nacional de
Freguesias (ANAFRE).
c) - A inconstitucionalidade
material e orgânica do citado art.º 10º da Proposta de Lei que regula a
pronúncia da assembleia municipal.
Uma das grandes conquistas do pós - 25 de Abril foi a constituição de um poder local autêntico, assente no princípio
da autonomia local, que juntamente
com a autonomia regional, é um dos princípios constitucionais fundamentais em
matéria de organização descentralizada do Estado. Hoje, as autarquias locais,
que são as freguesias e os municípios, e que são pessoas coletivas
públicas de população e território, contrariamente ao que sucedia no âmbito da
Constituição de 1933, fazem parte, não da administração direta ou indireta do
Estado, mas sim da sua administração
autónoma (art.ºs 199º, al. d) e 235º e 236º da Constituição da República
Portuguesa (CRP) de 1976), gozando este princípio da autonomia de uma garantia
tal que se impõe ao poder de revisão da própria Constituição, visto que ele
constitui um dos explícitos limites materiais da sua revisão (ibdm, art.º 288º, al. n)).
Quer isto dizer que as autarquias locais, além de terem um património e
finanças próprios (ibdm, art.º 238º,
n.º 1), gozam do poder de auto-gestão ou auto-administração através de órgãos
próprios, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa (ibdm, art.º 237º), não podendo a lei
conferir ao Governo nem a qualquer outra autarquia o poder de lhe dar ordens ou
instruções nem prever um controlo de mérito dos seus atos, mas apenas do
cumprimento da legalidade, visto não fazerem parte e nem pertencerem ao Estado.
São entidades independentes e completamente distintas do Estado, embora possam
ser por ele subsidiadas e fiscalizadas no uso da tutela da legalidade. E,
assim, como são independentes do Estado são igualmente independentes entre si,
visto não existir qualquer hierarquia entre os municípios e as freguesias, nem
qualquer relação orgânico-estrutural entre si. São estruturas sobrepostas
independentes, embora a circunscrição territorial dos municípios seja composta
por circunscrições territoriais de freguesias, mas estas não constituem frações
dos municípios, sendo, antes, verdadeiros entes territoriais autónomos (No
sentido do exposto, vide a “Constituição
da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição, dos Profs Doutores Gomes
Canotilho e Vital Moreira, págs. 880
a 910) e ainda o “Curso
de Direito Administrativo”, vol. I, 2ª edição, págs.417 a 546, do Prof.
Doutor Freitas do Amaral).
A autonomia local, além de ter
garantia constitucional (ibdm, art.ºs
235º e segs) está igualmente consagrada na Carta
Europeia de Administração Local (1985), que vincula Portugal (artºs 2º a
4º)
Como atrás já referimos, o regime de criação, extinção e modificação
territorial das autarquias locais está incluído na reserva absoluta de competência da Assembleia da República, precedendo consulta dos órgãos das
autarquias abrangidas (ibdm, art.º
s 164º, al. n), 236º, n.º 4 e 249º da CRP).
Ora a forma de as autarquias interessadas poderem ser ouvidas sobre a sua
criação, extinção ou modificação territorial pode ser feita de diversos modos:
audiência prévia, parecer vinculativo, co-decisão, direito de veto, etc. Mas
tudo isto são formas diferentes daquela que vem consagrada no art.º 10º da
Proposta, que é uma “pronúncia” ou
co-decisão de uma autarquia sobre a extinção, criação e modificação territorial
de outras autarquias, que são as freguesias, que são autónomas e independentes
do respetivo município, e que irá ser entregue à Assembleia da República para
efeitos de serem tomadas em conta na consagração legislativa daquelas extinções
e que irão dar lugar a novas criações de autarquias, ou seja, a novas pessoas
coletivas territoriais e modificações territoriais. É certo que a modificação
territorial é também da própria área do município, mas a “pronúncia” do art.º 10º vai muito além deste aspeto da mera
consulta e determina a extinção de autarquias autónomas para dar lugar a outras
novas também autónomas (n.º 2 do art.º 7º da Proposta). Ora fazer intervir os
órgãos do município na extinção e criação de freguesias no seu território,
através da “pronúncia”, que não é
apenas resultado de uma consulta, tal como vem delineada no art.º 10º da
Proposta, é manifestamente violador do princípio constitucional da autonomia local, atrás referido, pelo
que a norma é manifesta e materialmente inconstitucional, bem como também o é
organicamente, por se intrometer em matéria da reserva absoluta de competência da Assembleia da República (ibdm, art.º s 164º, al. n), 236º, n.º 4
e 249º da CRP).
d) - Análise da aplicação em
concreto da Proposta ao município de Oliveira do Bairro.
A Proposta é, assim, muito mais potenciadora de prejuízos para o
município de Oliveira do Bairro do que o era o “Documento Verde”. Este não colocava
em situação de eventual agregação nenhuma das suas freguesias. A Proposta
coloca em risco dessa agregação obrigatória as freguesias de Oiã, precisamente
a que tem o mais elevado número de habitantes, e a do Troviscal, conforme
passaremos a demonstrar.
A Proposta classifica, nos seus anexos, o município de nível 3, como já o havia feito o
“Documento Verde”, e, ao mesmo tempo, considera como único lugar urbano Oliveira do Bairro. Dado que neste lugar urbano apenas
se situa parcialmente o território de uma única freguesia, que é a de Oliveira
do Bairro, ou seja, o município não tem lugares urbanos que abrangem mais do
que uma freguesia nem lugares urbanos sucessivamente contíguos que abrangem
mais do que uma freguesia, não se lhes aplica o 1º parâmetro da al. c) do n.º 1
art.º 5º da Proposta, ou seja, a redução de 50% das freguesias urbanas, mas
apenas o de 25% no total das suas freguesias. O número total das suas
freguesias é de oito, pelo que têm obrigatoriamente de ser agregadas duas das
suas freguesias, ficando apenas, no futuro, com seis freguesias.
O pólo preferencial dessas agregações, na falta de acordo entre si, é,
por força dos art.ºs 3.º, n.º 2) e 6º, n.º 3) da Proposta, a referida freguesia
de Oliveira do Bairro, como freguesia urbana que é, e das freguesias contíguas,
que são Oiã e Troviscal. A não ser que haja razões de natureza histórica,
cultural, social ou outras que justifiquem outra solução. Deste modo, poderão
obrigatoriamente ser agregadas as freguesias de Oiã e Troviscal por serem
contíguas à freguesia urbana de Oliveira do Bairro.
Qualquer destas situações poderá ser imposta por proposta concreta da Comissão Técnica referida no art.º 12º
da Proposta, já que, como vimos, é inconstitucional a “pronúncia” da assembleia municipal normatizada no art.º 10º da
mesma Proposta.
Abril de 2012.
a) Nuno da Silva Salgado, juiz conselheiro do Supremo Tribunal
Administrativo, jubilado; Ex - inspetor geral da Administração do Território e
ex-chefe da equipa de missão para a elaboração do projeto do “Código de
Administração Autárquica”, criada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
100/2000, publicada na II Série - B, nº 184, de 10 de Agosto, do D. R..